O impacto da imagem no nascimento psíquico de um prematuro.
As imagens do Método Canguru se inserem em um contexto global de massificação de imagens através de redes sociais, aplicativos de smartphones, internet veloz e da telecomunicação. Elas podem contribuir para o desenvolvimento de reflexões e debates sobre a relação entre imagens, psicanálise e processo de acolhimento de bebês prematuros de mães, pais e famílias contemporâneas. Um dos aspectos mais dinâmicos desta inserção é a observação da crescente utilização de redes sociais como Instagram e Facebook na confecção e circulação de postagens de conteúdo pessoal sobre o cotidiano de famílias do Brasil e de outros países.
O mundo percebeu uma grande massificação de imagens na última década do século XXI. Câmeras digitais se tornaram cada vez mais populares, celulares e outros dispositivos passaram a acumular funções de fotografar, manipular e divulgar imagens. A chegada da fotografia digital no ambiente doméstico e comercial simboliza o auge da acessibilidade e vastidão de imagens produzidas. No entanto, não deve ser vista como causadora da suposta banalização da fotografia – Susan Sontag afirma que “um modo melhor para o mundo real incluir o mundo das imagens, vai demandar uma ecologia não só de coisas reais mas também de imagens” e afirma que as câmeras são “o antídoto e a doença”. Os textos de Sontag foram escritos no final dos anos 1970, antes da chegada das câmeras digitais e das redes sociais.
Mas é no momento atual que a fotografia demonstra fortemente sua dualidade, de possibilitar ao público a capacidade de dar visibilidade a um ser, assim como criar propostas para novos seres. Ela tece uma trama em que o real e o possível se tornam constantemente próximos. A importância das imagens na construção de uma realidade depende de seus realizadores (não apenas artistas, cineastas, fotógrafos, mas pessoas que portam uma câmera) e sobretudo de seus leitores (público-alvo em redes sociais, revistas, exposições).
Sobre essas imagens é importante pontuar aspectos teóricos da fotografia. O consenso de que a fotografia mimetiza a realidade e dela oferece uma prova irrefutável é questionado há tempos. O artista e teórico Juan Fontcuberta define a fotografia como “uma ficção que se apresenta como verdadeira”. Já Roland Barthes a considera subversiva “não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa” e isto pode ser compreendido como quando a fotografia proporciona reações ou reflexões densas sobre o cotidiano, a vida e sobre a nossa forma de perceber a própria realidade. Sobre essas duas considerações podemos pensar que as imagens fotográficas possuem características que as conecta com a realidade, mas que também estão presas à condição de ficção, por serem facilmente encadeadas nos artifícios das narrativas, composições e enquadramentos. Dentro desta dualidade, podemos ressaltar a capacidade das imagens de evocar sentimentos nas pessoas e inspirá-las.
A fotografia como ato de cuidar
Imagens fotográficas são fragmentos de histórias ou memórias, muitas vezes são acompanhadas de textos, e se apresentam timidamente de forma ilustrativa. Susan Sontag tece um comentário sobre a condição da fotografia enquanto fragmento, quando diz que “não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir”. Fragmentar a realidade é uma condição benevolente da fotografia e das histórias, assim como também questionar as polaridades entre verdades e ficções quando são assim impostas.
As fotografias do binômio pais/bebê utilizando a metodologia Canguru dá a esses pais o direito de uma nova imagem desse bebê prematuro nas redes sociais. A imagem traz poder e a dor de ser pai para um prematuro fica mais leve. A fotografia se torna uma porta para a transposição do ato de cuidar. As imagens e o contato com o bebê também se tornam instrumentos úteis na reconstrução do bebê imaginário para pais e funcionários. A imagem, neste caso, não pertence apenas ao fotógrafo, mas a toda a equipe que permite que o Método Canguru (Kangaroo Mother Care) aconteça no ambiente do hospital. A fotografia da metodologia Canguru, tiradas em uma maternidade brasileira pela pediatra da unidade, registra momentos de vivência no dia a dia hospitalar de um prematuro e evidencia sinais de interação psíquica mãe-bebê, nos mostrando um reencontro com o prazer advindo do toque e do contato pele a pele. Essas imagens, registro da metodologia Canguru colocam à mostra a transmissão de mensagens corporais e afetivas entre os pais e seus bebês. Portanto, a vivência Canguru auxilia na formação do psiquismo que tem início na metabolização dos estímulos sensoriais em um bebé prematuro. As fotografias do dia a dia, do cuidado materno e paterno na posição canguru, mostram que o filho imaginado está ali com todo potencial a ser desenvolvido. Ouvir a mãe e ver o seu olhar ao ver a foto, traduz emoção e representa o cuidado dela no gestá-lo fora do útero. A fotografia fala também para um despertar do cuidador na importância do cuidado contingente da metodologia. As fotos constituem o espelho do trabalho de uma equipe engajada e envolvida com a metodologia. Elas representam o pensamento da metodologia sobre o cuidado. A fotografia é um portal, uma chave, uma licença para acessar a vida das famílias prematuras.
A reconstrução do filho imaginário
O projeto fotográfico está lidando com a sensibilização e inspiração, sendo a imagem um instrumento mediador da reconstrução de laços afetivos. O que se pode confirmar pela fala de uma mãe entrevistada, que diz que a foto permitiu que a relação da família com seu bebê fosse transformada de “Ai, que dó!” em “Aí, que lindo!”(M.G.B.) Nesse sentido, as imagens vão ao encontro da teoria psicanalítica que, ao compreender a importância das experiências infantis precoces na formação psíquica do sujeito, tem sido um instrumento fértil para os profissionais que participam do “renascimento” dos bebês. Outra mãe abordada 1 ano após a imagem, sobre para ela o que significava a foto, falou: “Eu quando eu vejo a foto, a palavra que me vêm à mente, é a palavra esperança. As pessoas hoje não sabem realmente, o que é esperança, não praticam esta esperança. Hoje ainda esta foto me emociona muito. Lembrar de todos aqueles dias e ver hoje ele deste tamanho, sem nenhum tipo de sequela, super bem, muito feliz e muito alegre. Ele sente esperança, eu passo isto para ele”. Como proposto pela psicanálise e observado na prática hospitalar e clínica dos autores deste trabalho, os cuidados estritamente biológicos podem não bastar para que a bebê sobreviva sem grandes comprometimentos. A fotografia vira então um instrumento e não um produto. Uma forma de sensibilizar a equipe e mostrar a ela o que ela produz, que é muito mais plural e menos singular. Sob essa perspectiva, este trabalho objetiva refletir através do instrumento fotográfico, sobre o impacto da metodologia Canguru no nascimento psíquico do bebê, sob a ótica psicanalítica. Hérve Bentata coloca que o sujeito precisa se alinhavar em seu corpo. Logo, o bebê precisa receber de seus pais um toque que imprima a percepção de um corpo unificado. O bebê em contato pele a pele com a mãe e o pai, propicia, do lado dos pais, a reconstrução do filho imaginário, que reserva um lugar no desejo dos pais, no qual o bebê possa vir a ser.A partir do que foi experienciado e relatado é possível perceber o potencial da reconstrução de laços oferecido pela fotografia nas maternidades. O que torna ainda mais importante ao considerar a visão psicanalítica de que as primeiras vivências emocionais poderão refletir ao longo de todo o desenvolvimento daquele indivíduo e, portanto, daquela família.
O projeto parte da atuação da fotógrafa e pediatra/neonatologista da equipe de uma maternidade brasileira de referência de alto risco obstétrico (Maternidade Odete Valadares da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG) Belo Horizonte-MG. Este trabalho foi apresentado no XII International Conference on KMC. International Network in KangarooMotherCare (Bogotá, Colombia, 14-17 de Noviembre-2018) onde recebeu premiação e no VI Congresso Internacional Transdisciplinar sobre o bebê Paris- julho 2019 (Instituto Langage / Pitié-Salpêtrière / Université Paris Diderot) com uma exposição fotográfica.
Trabalho tem sido feito em conjunto por
Gláucia Maria Moreira Galvão- Pediatra Neonatologista, Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdade de Medicina UFMG, Doutoranda em Saúde da Criança e do Adolescente-Faculdade de Medicina UFMG-Tutora Estadual do Método Canguru em Minas Gerais. Fotógrafa @glauciagalvaobh. Maternidade Odete Valadares – Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil
Contato: E-mail: gmmgbh@gmail.com
Ethyene Andrade Costa-Psicóloga Clínica Especialista em Psicanálise Clínica da Criança e do Adolescente, Mestre em processos psicossociais de subjetivação. Postulante à formação em psicanálise pela Sociedade Brasileira de Psicanálise – MG.Contato: E-mail: ethyenepsi@gmail.com