Telas um Risco para Constituição. Denise Feliciano

Telas: um risco para a Constituição da mente da Criança.

A Tecnologia como agente patologizante.

Foi com alívio que nós, psicanalistas dedicados à primeiríssima infância, recebemos as recomendações da OMS sobre o uso de telas por crianças pequenas. Até 2 anos a criança não deve ter contato com telas e após essa idade com tempo regulado de acordo com sua fase de desenvolvimento. Esperamos com certo otimismo não vermos mais televisões colocadas em berços para o bebê dormir ou celulares presos no sutiã para acalmar o bebê enquanto mama. Cenas que foram compartilhadas por colegas ao longo dos últimos anos.

                A acelerada evolução da tecnologia e a inclusão dos chamados gadgets no cotidiano das famílias, imprimiu mudanças significativas nas interações. As gerações passaram a ser diferenciadas por Y, Z e atualmente a geração alpha parece ser o extremo oposto do que o psicanalista inglês Wilfred Bion chamou de função alpha da mãe como condição primordial para a constituição da mente do bebê. Em linhas gerais, seria a capacidade dos cuidadores, sobretudo a mãe, de compreender e dar significados aos incômodos e choros do bebê numa etapa de vida em que o desconforto é vivido por ele como uma sensação de desamparo e ameaça à sua existência.

                Atualmente temos visto que em lugar de oferecer um olhar cuidadoso, um colo ou uma voz que possa assegurar ao bebê e às crianças pequenas uma presença confortável, as famílias tentam distraí-las com telas repletas de imagens agitadas e coloridas, que são um excesso ao seu desenvolvimento neurológico. Psiquicamente as telas impedem que se constitua uma qualidade interativa e essa falta é um risco à saúde mental desta criança.

Cuidados Tecnológicos X O Olhar dos Pais

                Apesar da medida protetora da OMS com as crianças, escapa à medida a atenção às telas dirigidas aos pais com toda a gama de aplicativos que visam auxiliá-los nos cuidados com o bebê.  Estão disponíveis APPs para mensurar o tempo de mamar, troca de fraldas, qualidade do sono etc. Isso implica numa substituição da possibilidade de os pais olharem para seus filhos e compreendê-los, pois, julgam prescindir da tecnologia para essas funções. Sem falar na presença maciça da TV nessa relação, deixada ligada como uma constante presença, numa espécie de antídoto contra uma suposta ameaça de solidão.

                No início de vida e constituição de sua mente o bebê vive como se sua mãe fosse uma parte de si e seus cuidados atentos e acolhedores contribuem para a ilusão vivida pelo bebê em que o mundo o satisfaz incondicionalmente de acordo com suas necessidades primordiais. Só um pouco mais tarde e com mais recursos psíquicos o bebê entende que a mãe está separada de si e começa a se dar conta que tem um terceiro, em geral o pai, que pode ser objeto do interesse de sua mãe e afastá-la. Cria-se uma tensão nessa relação inicialmente dual que antes era totalmente satisfatória e confortável, impondo ao bebê doses gradativas de frustração que vão ajudá-lo a desenvolver condições mentais para lidar com ela e fortalecer suas capacidades psíquicas. É o que a psicanálise chama de Complexo de Édipo, trama constitutiva da mente humana.

                Esse processo é fundamental, mas precisa ser a seu tempo. O distanciamento precoce da mãe é sentido pelo bebê como uma ameaça à sua existência, um desamparo aterrorizante cujo sofrimento é superior à sua capacidade de processamento mental. Estamos diante do risco de transtornos graves no desenvolvimento que inclui o tão temido espectro do autismo, que cada vez mais vem sendo motivo de alerta pelo aumento estatístico de sua incidência.

Na chamada geração alpha a ‘dupla’ mãe-bebê dá lugar à uma ‘tríade’ muitíssimo anterior àquela constitutiva do Complexo de Édipo – mãe-gadget-bebê. Como se fosse imprescindível um tradutor que a livrasse da angústia do não-saber: por que seu filho chora, quanto e quando mamou, quando sujou as fraldas, se tem cólicas ou manhã. Tudo para tentar o absoluto conforto e imediatismo das respostas que possam calar os bebês de seus resmungos e choros, que é sua linguagem.

                Seria preciso que o tablet ou smartphone pudesse se estilhaçar no chão para que sua tela mostrasse de fato o que vive um bebê. A mais terrorífica sensação de não ser uma unidade. O Eu ainda não foi constituído e ele conta com um cuidador atento para não se sentir fragmentado. É essencial os cuidados maternos afetuosos, com um pai dando retaguarda à essa relação. Uma mãe que não se distraia numa tela qualquer.

                Em 1967 a psicanalista inglesa Esther Bick publicou um importante estudo sobre as etapas mais precoces da vida mental e abriu campo para muitas outras pesquisas. Hoje contarmos com uma vastíssima bibliografia sobre as etapas primitivas da mente, e uma possibilidade de intervir psicanaliticamente cada vez mais cedo nas relações entre os bebês e seus cuidadores primários que apresentem riscos de perturbações mentais, resultado de falhas nessa interação precocíssima.

O olhar é o principal indicador de saúde em um bebê. A fuga ou opacidade no contato visual do bebê comunica o risco de encapsulamento em si mesmo, impossibilidade ou indisposição para interação. Assim como o olhar da mãe para o bebê indica sua condição de atender suas demandas, compreender suas angústias e traduzi-las em linguagem. Tudo o que um bebê precisa é de uma mãe atenta. Que não se distraia ou se perca em telas vazias de significados afetivos. O bebê suporta e se estrutura com eventuais incertezas e falhas de uma mãe que esteja fundamentalmente presente.

Denise de Sousa Feliciano
 

Psicóloga e Psicanalista pela IPA. Membro Associado na Sociedade de Psicanálise de SP. Mestre e doutora pelo IPUSP/SP em psicologia clínica e do desenvolvimento humano. Especialista em Psicopatologia do Bebê pela USP/Paris 12. Membro efetivo do Departamento de Psicanálise com Crianças do Sedes Sapientiae. Docente do Curso Relação Pais-Bebê: Da Observação à Intervenção – Sedes Sapientiae. Membro e atual presidente do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Membro do Departamento de Aleitamento Materno da SPSP 

Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Contato: e-mail: denisefeliciano@uol.com.br Telefone: (11) 98904-8424

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