Risco não é Diagnóstico

Um pouco de História sobre a saúde mental das crianças

Em 1954, a publicação de J.Bowlby, Cuidados Maternos e Saúde Mental, a pedido da OMS ( Organização Mundial da Saúde) , trouxe à tona, de forma inequívoca, a noção do risco e prevenção na primeira infância. Em 1951, Spitz escreveu sobre o Hospitalismo, um quadro de depressão nas crianças que acontecia quando elas eram hospitalizadas, e na época, ficavam separadas dos seus pais. Soulé, na França, sob influência de Spitz e Bowlby começa a advertir sobre Efeitos Psicológicos da separação pais- criança e as consequências psíquicas de uma vida em lares coletivos. Inicialmente ele é malvisto por criticar uma organização criada para defender a infância e encontra muita resistência dos pediatras, que vêem suas preocupações como um exagero dos psiquiatras.

 Entretanto, após alguns anos, ele é convidado a fazer parte de uma comissão para pensar ações de políticas públicas.  Em 1980, ele organiza, juntamente com Janine Noel, um documento que traçará as estratégias de prevenção para a primeira infância na França – o Documento P: Uma prevenção Médico-Psicossocial Precoce, que não pretendia mais atender somente as demandas explícitas (herança da prática psicanalítica), mas ampliou  os objetivos da intervenção para atender a uma população que não demandava cuidados mas estava em sofrimento psíquico (demanda camuflada).

A prevenção foi uma ideia que surgiu após os anos de trabalho em St Vincent de Paul. “Eu vi crianças das quais se dizia: ‘nós poderíamos ter nos ocupado antes’. Eu pensei então em organizar uma prevenção muito precoce… O Documento P (1980) constitui, então, uma síntese de nossa visão da Prevenção… defendemos ali a noção de Sinais de alerta para diferenciar das noções em voga pelos administradores de Indicadores de Risco, malvisto pelos profissionais que subentendiam um aspecto policialesco”.

A prevenção de riscos no Brasil

Entre 2000 e 2008, no Brasil, o Ministério da Sáude e a USP financiam Pesquisa Multicêntrica para Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil –IRDI,[1] sendo que15 indicadores foram validados como preditivos para problemas do desenvolvimento.

Em 2008, a pesquisa PREAUT organizada na França com mais de 600 pediatras para identificação de risco de autismo em bebês, chegou ao Brasil. O grupo nacional, do qual faço parte, tem promovido a capacitação em torno dos 2 Indicadores para Risco de Evolução Autística pensados por Marie-Christine Laznik a partir da idéia do não fechamento do Circuito Pulsional completo (Oral e Escópico). O bebê com risco de autismo não se faz olhar por sua mãe na ausência de solicitação dela (Sinal 1), ou seja, o bebê não chama atenção da sua  mãe ou outro cuidador quando este não está se dirigindo a ele  e não se oferece como objeto do seu gozo oral (oferecer mãozinhas, barriguinha para se fazer beijar, mordiscar)(Sinal 2).

Em 2016, juntamente com a equipe de Pisa, publicamos um artigo sobre as trajetórias pré-linguísticas como marcadores precoces para risco de autismo e enfatizamos a presença de balbucio não social (não acompanhado pelo olhar para o interlocutor) como sinal de risco para evolução autística.

As pesquisas atuais acerca do autismo.

Em 2019, juntamente com a equipe do Instituto de Formação André Bullinger (IFAB), iniciamos um estudo clínico (em andamento) sobre Indicadores de Risco de Sensório-Motricidade no primeiro ano de vida. Pareceu-nos que os Indicadores mais frequentes no TEA  são relativos a: responsividade e vitalidade (lento para reagir); Estado Tônico (Hipotonia, ou seja, tônus muscular mais baixo); além de alterações sensório motoras diversas: hiperextensão (quando o bebê se arqueia para trás); atraso na organização da linha média (quando o bebê não consegue juntar as mãos no meio do seu corpinho); atipias mãos e dedos (movimentos estranhos e pouco comuns); ausência de enrolamento do quadril (quando o bebê não consegue levantar o bumbum para tentar pegar os pezinhos) e má qualidade nos marcos do desenvolvimento tais como arrastar, sentar, engatinhar e andar. Observa-se também após os 12 meses uma  marcha instável,  desequilíbrio, deambulação (criança anda de um lado para outro sem objetivo aparente) e, ainda, alterações de linguagem  como pouca vocalização (sons de vogais) e raridade do balbucio (duplicação de sílabas) ou um balbucio tardio ou ainda que começa mas não se amplia, não desencadeando nas primeiras palavrinhas como papa e mama por exemplo.

Muitos autores salientaram alterações motoras em bebês que mais tarde tiveram o diagnóstico de autismo, tais como atrasos nos marcos motores, hiperatividade, flapping (um bater os braços como movimentos de voar),falta de coordenação motora, equilíbrio pobre, alteração do movimento de pinça, tônus e reflexos com anormalidades, movimentos estereotipados de membros e dedos, padrões de marcha atípico e também alertaram para os aspectos comunicativos como performance pobre de imitação e fracasso no uso de gestos comunicativos.

Teitelbaum et al. enfatizaram padrões reflexos não inibidos na idade apropriada. Ele identificou também assimetria  (diferenças em padrões de movimento de um lado do corpo em relação ao outro) persistente após 4 meses; o virar-se de barriga para cima para barriga para baixo em bloco; inabilidade para se manter sentado aos 6 meses e falta da reação de proteção lateral (o bebê ao desequilibrar não usa as mãos para se segurar)  além de desvios do padrão típico do engatinhar (pode engatinhar com uma perna dobrada e outra esticada)  e marcha com assimetria e posição atípica dos braços.

Segundo Gernsbacher et al, os indicadores de motricidade oral (da boca) e motricidade manual (da mão) distinguem melhor os autistas dos não autistas que a não resposta ao nome aos 12 meses. Quanto maior a habilidade motora oral, mais próximo do Desenvolvimento Típico (DT), ou seja, o desenvolvimento esperado para a idade. Quanto menor a habilidade motora manual, menos fluência de fala; quanto maior a habilidade motora manual, mais próximo do DT. Quanto menor a habilidade, menor fluência da fala. Fatores em que não houve variação quanto à fluência da fala foram os seguintes: a produção de vocalização; a capacidade de franzir lábios (beijinho) e o controle de saliva. Assim como bebês em estágios iniciais da fala, as crianças com menos fluência falam mais vogais e menos consoantes.

Um estudo piloto de Phagava et al.  feito a partir de filmes familiares fez uma análise comparativa entre Desenvolvimento Típico (DT) e Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) em relação à qualidade dos movimentos gerais. Os resultados revelaram que 70% dos bebês que mais tarde tiveram diagnóstico de TEA apresentaram Writhing Movements (WM) pobre, enquanto apenas 12,5% dos bebês de DT apresentaram alteração. Eles registraram também que 20,8% dos bebês com TEA não apresentaram Fidgety Moviments (FM) e 29% deles apresentaram movimentos atípicos. Com os bebês típicos, a ausência desse tipo de movimentos foi de 11%, mas 89% apresentaram padrão normal de atividade esperada para a idade.

Outro estudo, o de Iverson et al, focou na observação das posturas aos 6,9, 12 e 14 meses. Os resultados revelaram que bebês de alto risco para autismo demoraram mais para adquirir a postura sentada e a de pé, 4 das 22 crianças de alto risco confirmaram diagnóstico para TEA. Elas apresentaram atrasos na aquisição de posturas mais avançadas e iniciavam menos as mudanças de posturas. Os atrasos posturais podem ter efeito cascata  uma vez que, adquirindo de forma plena a postura sentada, o bebê pode organizar melhor sua exploração de objetos e sua exploração vocal (melhor emissão de sons de consoante que prepara para o balbucio). Ao ficar de pé de forma equilibrada, há uma maior exploração do espaço e facilita a busca por objetos não alcançados (aumento da ação de apontar), aumenta os riscos e os pais ampliam estratégias comunicativas.

Finalizamos deixando para reflexão muitas questões que tem feito parte das discussões entre aqueles que se ocupam da Intervenção a tempo ou Intervenção oportuna, ou seja, sempre que há indícios de que o bebê possa manifestar sinais de sofrimento e/ ou atrasos nas suas aquisições, ou marcos do desenvolvimento.

  • Temos salientado a necessidade de aprofundar a Psicopatologia do puerpério e  sua incidência sobre o neurodesenvolvimento afim de pensar em propostas terapêuticas individualizadas e não só com ênfase e na perspectiva de risco para autismo.
  • Estamos de acordo que um bebê não pode ter um diagnóstico selado e concluído haja vista que ele está estruturando sua constituição psíquica e organizando seu desenvolvimento sob pena de patologizarmos a infância, já muito medicalizada no momento atual.
  • A  Intervenção precoce ante o risco implica necessariamente o manejo da angústia parental e, por isso, a formação do profissional que atua com o bebê e sua família deverá ser extremamente complexa e rigorosa. Entre os psicanalistas, pensamos que a formação para atuar com o bebê e sua família exige uma formação em psicanálise; uma experiência na clínica com adultos e crianças; o conhecimento sobre o desenvolvimento do bebê 0-3 anos além da atuação em interdisciplina visando chegar na transdisciplina.

 E, finalmente fica a provocação: como a psicanálise e sua aposta na constituição psíquica pode se abrir para uma atualização para o campo das neurociências e assim estabelecer uma ponte entre os dois discursos ?

Daniele de Brito Wanderley

Psicóloga, Psicanalista. Especializaçãoem Psicopatologia do Bebê (UnivParisXIII). Especialização em psiquiatria 0-3 (Univer ‘Paris V) Mestra em Medicina e Psicanálise(Univ ´Paris VII)Coordenadora do NIIP. Diretora da coleção De Calças Curtas. Editora Agalma.Organizadora dos volumes: “Palavras em torno do berço”, “Agora eu era o rei”, “O cravo e a rosa”. Autora do livro:Aventuras Psicanalíticas com criançasautistas e seus pais. Membro do PréAut Brasil. Membro associado da CIPPA.Membro da RIEPPI. Pesquisadora do Labirinto (pesquisas em autismo).

Contato: E-mail: danielebw@hotmail.com site: www.niip.com.br Instagram niipespacobebebrincante


[1] Leia na íntegra a entrevista com o coordenador científico desta pesquisa Professor Dr. Alfredo Jerusalinsky disponível na primeira edição da Revista Crianças

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *