O romance familiar do neurótico é uma regularidade da criança da família burguesa moderna em que ela inventa uma filiação imaginária. O devaneio é construído em torno da fantasia de que ela é, possivelmente, adotada ou enteada dos seus verdadeiros pais. O romance fica mais complexo quando ela descobre como são feitos os bebês e que pater sempre incertus est, enquanto a mãe é certíssima, como dizia Freud.
Meu romance familiar era diferente. Quando eu era pequena imaginava a possibilidade do mundo não ser real e tudo não passar de uma grande novela. A novela nos anos 80 era a ficção que siderava minha mãe depois das oito da noite e seus lp’s, em alto e bom som, antes das nove da manhã. Eu ficava com a sensação de que despertava em uma festa, como se alguma coisa alegre já me esperasse do lado de fora do sonho, perhaps love. Eram John Denver e Plácido Domingo. Finge que tinha sol.
O ninho da serpente era a novela do ano em que eu nasci. Guilhermina Taques Penteado era poderosa e não se importava em saber de onde vinha o dinheiro, desde que sua família permanecesse no poder. Cândido Taques, irmão da matriarca, vivia isolado em sua mansão e foi brutalmente assassinado, colocando todo o clã Taques Penteado em expectativa de herdar sua fortuna de joias, dinheiro, ações e perhaps love.
No meu ninho nada disso acontecia. Finge que eu nascia e que eu era a terceira filha, a única com os olhos verdes da minha mãe, Perhaps love is like a resting place, a shelter from the storm.
Mas (mater e) pater sempre incertus est no coração da criança. Então finge que eu vinha de uma novela que existia há muitos anos, tantos quantos eu. Oito. E finge que um dia eu descobria que tudo era novela: mamãe, papai, Camila, Emilia, Cleusa, Esmeralda e Guilhermina Taques. Finge que mamãe resolve me contar a verdade: Marilia, esta não é sua casa, não somos seus pais e nem essas, suas irmãs. Marilia, somos atores e agora você vai voltar para sua casa, com sua verdadeira família. Perhaps loves like the ocean Full of conflict of pain. E lá se foram as cordas invisíveis, os microfones secretos, o cenário perfeito da ilusão do ninho da serpente – finge que ela era brava.
Com o tempo, o cuidado e a regularidade da presença dessas pessoas confirmei a realidade da minha vida. Uma conquista poderosa e permanente que assentou para sempre o estúdio de gravação do lado de dentro do meu coração. Vez ou outra cai um cabo, falha um microfone, descola um cenário, mas eu finjo que não vejo.
Marilia Velano
Psicanalista, professora do departamento de psicanálise com criança do Instituto Sedes Sapienteae, doutoranda em Psicologia no IPUSaP
Contato: e-mail: mariliavelano@gmail.com