O Diagnóstico do TDAH e a Medicalização na Infância

Nas últimas três décadas, o aumento do número de diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) na infância e a prescrição de medicações psicoestimulantes para crianças em idade escolar tem tomado proporções tais que podemos defini-la como uma verdadeira epidemia. No Brasil, um estudo divulgado em 2012 pela Associação Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) mostrou que entre 2009 e 2011 o consumo do Metilfenidato, conhecido como a “droga da obediência” e comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 06 aos 16 anos. Com mais de 2 milhões de caixas vendidas apenas em 2010 e um aumento de 775% do consumo nos últimos anos, o Brasil tornou-se, em 2010, o segundo mercado consumidor (até então liderado pelos EUA) e em 2020, provavelmente, o país que mais patologiza e medicaliza crianças em todo mundo. O que nos coloca frente ao desafio de realizar uma abordagem complexa e não superficial do problema.

O que é a Medicalização na Infância?

O termo medicalização se refere ao processo pelo qual problemas sociais, econômicos, culturais e psíquicos passaram a ser definidos como problemas médicos em termos de doenças e transtornos. Nesse sentido, a ação medicalizante não está relacionada apenas ao diagnóstico e à prescrição do medicamento, na medida em que o próprio uso da linguagem médica para descrever experiências constitui um dispositivo medicalizante. De acordo com inúmeros autores, a medicalização consiste na impossibilidade de descrever experiências que não passem, necessariamente, pelo discurso da Medicina (Zorzanelli, Ortega e Bezerra Júnior, 2014). Atualmente, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), o Transtorno Opositivo Desafiador e o Transtorno de Conduta lideram a lista dos transtornos mais diagnosticados por neuropediatras e psiquiatras infantis. Entretanto, os índices são radicalmente discrepantes dependendo dos critérios diagnósticos utilizados: enquanto em 2011 países como o Brasil e os EUA, que utilizam o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) como critério diagnóstico apresentavam índices alarmantes, a França, que utilizava como referência diagnóstica a Classification française des troubles mentaux de l’enfant et de l’adolescent (CFTMEA) apresentava um índice inferior a 1% de suas crianças diagnosticadas com TDAH e medicadas com Metilfenidato. Por isso, a popularização da ideia de que as crianças francesas não possuem TDAH. Na realidade, essa afirmação não tem nada a ver com as crianças francesas, mas, com o modo de abordagem das problemáticas infantis e com os critérios diagnósticos adotados pelos profissionais que se ocupam da infância na França.

O diagnóstico do TDAH é científico?

A resposta afirmativa é NÃO! Diversas são as pesquisas que têm demonstrado que o TDAH não existe cientificamente. Nada foi descoberto, nem em genética, nem em bioquímica, nem em exames de imagens que poderia sustentar sua existência. A própria Associação Americana de Psiquiatria afirma em seu Manual de Desordens Mentais (DSM) que nenhum exame neurológico, assim como nenhuma avaliação da atenção poderia ter valor diagnóstico.

No entanto, o TDAH existe como uma construção discursiva e social que surgiu não apenas para criar consumidores para a Ritalina – nome popular da molécula do Metilfenidato no mercado – mas, para justificar as problemáticas advindas da entrada em massa de crianças na escola a partir da regulamentação da lei que torna a escola obrigatória.

Foi a partir da instauração da escola laica, obrigatória e gratuita e a inscrição da escolarização como uma promessa de ascensão social para as crianças dos meios desfavorecidos que se produziram imperativos do sistema de produção econômica, que passaram a designar as “exigências escolares” visando à necessidade de modelar os comportamentos dos alunos pobres e inadequados em nome da “Segurança Social”. Dito de outro modo, vigiar, diagnosticar e patologizar dentro da escola crianças que produzam algum tipo de desordem para a sociedade. Trata-se de uma vigilância exercida em torno da criança que não se adapta às imposições escolares e que se converte em exercício de poder e de produção de um saber sobre a criança, motivo pelo qual se aperfeiçoam as técnicas de observação, classificação e análise dos comportamentos. Dito de outro modo, “(…) a partir do momento em que a educação escolar se estabelece na dimensão do universal, institui-se também uma lógica normativa que estranha e exclui o que possa advir de singular de cada estudante” (Edington, 2012, p.41).

A Origem dos Hospícios e a Criação das Escolas Especiais

A conjuntura acima descrita deu origem à criação das classes especializadas e dos internatos de aperfeiçoamento para os alunos que não se adaptavam às “normas escolares” instituindo juridicamente a necessidade da oferta de diversos tratamentos institucionais diferenciados numa lógica em que a educação das crianças anormais se apresentou como uma resposta aos transtornos sociais produzidos caso a criança fosse para uma escola regular. E o que se verificou na prática?

Que a lógica de uma educação especializada é justamente o fundamento da institucionalização da diferença, cerne na consolidação dos hospícios para crianças no Brasil, cuja oferta psiquiátrica conjugou não apenas o controle restrito da criança em nome da defesa do bem-estar social em que a agressividade e a oposição da criança foram interpretadas como sinais clínicos de uma delinquência anunciada. Contexto que deu origem ao Código de Menores no Brasil que, aprovado em 1927 após intensos debates, colocou sob a “tutela do Estado” a tarefa de definir o conteúdo psíquico e social das irregularidades que transformariam a criança proveniente das classes menos favorecidas uma ameaça ao Estado e à Ordem Social, tornando frequentes os encaminhamentos da criança para avaliação dos problemas de aprendizagem acompanhados das novidades no campo da psicofarmacologia, da neurologia e da psiquiatria. Época de um crescente investimento no estudo de aspectos biológicos envolvidos nas enfermidades psiquiátricas que não apenas provocou o afastamento da psiquiatria de outras áreas da medicina, mas, promoveu tragédias como a internação de um adolescente com tumor cerebral, equivocadamente, diagnosticado como um caso de desordem psiquiátrica. Contexto em que os encaminhamentos realizados pelo Juizado da Infância e da Juventude passaram a compor uma parcela bem expressiva de pacientes (crianças e adolescentes abandonados ou infratores) encaminhados para escolas especiais que se transformaram em uma espécie de internação psiquiátrica. Encaminhamentos que demonstram que o dispositivo médico-judiciário se tornou a modalidade oficial de intermediação entre o sujeito e a sociedade. “Otávio, dentro do hospital-prisão em que se transforma a seus olhos a unidade psiquiátrica onde está internado, oscila entre o comportamento “delinquente”, quando se une a outros jovens “infratores” na formação de uma “gangue”, e um comportamento de menino assustado, reconstruindo a cada momento a sua tragédia e ligando-se à estagiária que participava da equipe de atendimento de forma muito intensa. A ela irá revelar seus anseios e mágoas, expor seu desamparo e perplexidade. Por vezes encenará também uma caricatura de “louco furioso”, golpeando o ar com os punhos cerrados e lançando olhares ameaçadores: tal recurso é utilizado quando os outros fracassam, e não raro é seguido de uma sonolência profunda, mesmo quando não está, há dias, em uso de qualquer medicamento” (Bentes, 1999).

Assim, diante das reações agressivas e oposições dos pacientes a equipe responde com técnicas de suplício: contenção no leito, aumento da medicação e advertências no prontuário quanto à “periculosidade” do paciente transformando sua tragédia familiar em segregação social.

O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é exatamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perde todo o controle. Nos “excessos” dos suplícios, se investe toda a economia do poder. Excessos sofridos por crianças encharcadas de medicamentos e feridas por outras crianças na instituição. Excessos cometidos pelas instituições médico-jurídicas que desrespeitando os direitos básicos da criança assumem a posição de carrascos que interpretam a “agressividade” como “falta de limites” destas que não se deixaram dominar pelos mais perversos instrumentos sociais de estigmatização, vigilância, controle e opressão impostos a partir dos tratamentos impostos.

Trata-se na expressão de Bentes (1999) “dos invencíveis pacientes”, meninos e meninas provenientes das camadas desfavorecidas da sociedade que, diagnosticadas com “transtorno de conduta” ou “Transtornos de comportamento”, desafiam e colocam em xeque os dispositivos médico-psiquiátricos.

O Lugar dos Instrumentos Diagnósticos

O DSM e seu método têm dominado a psiquiatria mundial há mais de 30 anos. A clínica psiquiátrica, que até então repousava sobre a observação e hipóteses teóricas metapsicológicas, pouco a pouco foi cedendo lugar a uma clínica fármaco-induzida em que os sintomas passaram a ser repertoriados em função da ação dos medicamentos. O que contribuiu para um falso raciocínio: se o medicamento age atenuando ou fazendo desaparecer os sintomas, isso quer dizer que os sintomas foram produzidos por um desequilíbrio químico que o medicamento visa reparar. Este raciocínio será explorado pela psiquiatria biológica para justificar o diagnóstico e a prescrição medicamentosa num contexto em que vemos florescer fenômenos de crença entre os profissionais de saúde que, sob o efeito de um entusiasmo de natureza religiosa, vão sustentar teorias que  repousando apenas sobre especulações e hipóteses, serão apresentadas ao grande público como validadas cientificamente.

Além da criação de novos transtornos e do alargamento dos critérios diagnósticos, a indústria farmacêutica trabalha de maneira impressionante, não na venda do medicamento – o Metilfenidato – mas, na promoção da doença – o TDAH. De acordo com o psiquiatra francês Patrick Landman as apelações estão cada vez mais modernas. É necessário, de maneira não explícita, gerar angústia nos pais e tocar seu sentimento de culpa, tomando o cuidado para não estigmatizar a criança já que a ideia é proporcionar aos pais a sensação de estarem dando um “tratamento adequado” ao filho. Lógica denunciada desde a década de 90 pelo psicanalista brasileiro Jurandir Freire Costa, que no livro Ordem Médica e Norma Familiar, aponta para a participação dos especialistas e da terapêutica proposta como um componente determinante e ativo na fabricação da doença (Costa, 1999).

Desta forma, para que a disease mongering (a mercantilização da doença) possa ser bem-sucedida, é fundamental conquistar a simpatia e a confiança daqueles que se ocupam das crianças, a saber: pais, professores e profissionais que atuam diretamente na área da infância. Lógica em que estes, capturados pela crença de que o TDAH é um transtorno neurobiológico caracterizado por sintomas de hiperatividade, desatenção e impulsividade, cumprem um importante papel na divulgação e promoção do transtorno, na identificação e acolhimento de novos “pacientes” a partir da premissa de que as crianças precisam ser “avaliadas”, “diagnosticadas” e “medicadas” o mais cedo possível para o sucesso escolar.

Os Riscos do Diagnóstico e a Medicalização na Infância

Desde Freud (1930), sabemos que a agressividade é produzida pelo próprio processo civilizatório, na medida em que este não apenas interdita a criança, mas coloca o Outro como fonte constante de conflito para o sujeito. Nesse sentido, ao levarmos em conta que a agressividade é fundadora do eu, do narcisismo e da cultura em que a mesma se apresenta como uma tentativa de separação/diferenciação da criança em relação ao Outro, como podemos pensá-la em uma lógica social que transforma as diferenças subjetivas e as desigualdades sociais em transtornos a serem medicalizados?

Nesta lógica, a medicalização se transforma em uma resposta coercitiva ao mal-estar, em que a parte mais fraca, nesse caso, a criança, estaria colocada, por meio da droga, como objeto num contexto em que os efeitos produzidos pelo fármaco, submissão e obediência, poderiam vir a “garantir” uma espécie de ordem social. Por isso, não é ao acaso que o diagnóstico e o início do “dito tratamento” sejam desencadeados pelos conflitos da criança na família ou na escola. Desta forma, a nomeação precoce realizada pelo diagnóstico pode provocar um deslocamento da identidade atribuída à criança ao produzir efeitos sobre o lugar da mesma na família em que os pais, ao invés de ocuparem o lugar de detentores de “um saber sobre o filho” se transformam em “funcionários do discurso médico” transferindo suas funções ao especialista, agente do saber pleno, portanto, sem faltas, depositário de expectativas e esperanças em relação a um desejo anônimo anunciado sobre o ideal de uma criança.

A “profecia” colocada pelo diagnóstico não apenas destitui o lugar de pais e filhos, mas funciona como um veredito insuperável que, ao antecipar o futuro, estabelece uma nova ordem, um pertencimento à doença que, ao justificar os atos, as falas e as condutas da criança, acabam impedindo sua inscrição em uma filiação familiar. Lógica em que os pais não ficam apenas órfãos de um filho, mas, deixam seu filho órfão de seus pais.   

Desta forma, o TDAH é uma falsa doença e os medicamentos psicoestimulantes não são o tratamento desta falsa doença. Eles suscitam uma enorme demanda social na medida em que sustentam a promessa de erradicar os sintomas e comportamentos de crianças e adolescentes que produzem mal-estar nas famílias e nas instituições escolares, permitindo que estes últimos não se coloquem em questão, mesmo ao preço da psiquiatrização, patologização e medicalização de suas crianças e adolescentes. Entretanto, ao patologizar nossas crianças e adolescentes, esquecemos que não apenas criamos obstáculos para sua organização psíquica e desenvolvimento, mas, fundamentalmente, impedimos que os adultos, a saber, pais e professores, possam se construir como agentes tutelares e responsáveis pela educação de seus filhos e alunos.

Michele Kamers

Psicanalista, Mestre em Psicologia e Educação pela Faculdade de Educação da USP -FEUSP. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano no Instituto de Psicologia da USP. Bolsista CAPES PDSE na Université Paris VII Denis Diderot no período de julho 2015 a maio de 2016. Professora e Coordenadora dos Cursos de Especialização em “Psicopatologia Infância e Adolescência”, “Psicanálise: Da Clínica à Cultura” e “Psicologia Hospitalar e da Saúde: Atuação Multiprofissional”, do Hospital Santa Catarina de Blumenau. Coorganizadora e coautora dos livros “Por Uma (Nova) Psicopatologia da Infância e da Adolescência” (2015) e “Desafios Atuais das Práticas em Hospitais e nas Instituições de saúde” (Finalista Prêmio Jabuti 2017) ambos publicados pela Editora Escuta/SP.

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