O brincar da criança: dentro e fora da escola
Brincar é um direito da criança! Previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, esse direito aponta à garantia de liberdade, respeito e dignidade. Embora pareça óbvio que crianças possam brincar, infelizmente algumas são convocadas a trabalhar precocemente e outras, mais privilegiadas economicamente, muitas vezes têm agenda cheia com atividades como curso de línguas, robótica, esportes entre outras, então sobra bem pouco tempo para brincadeira.
Brincar é a maneira mais espontânea que a criança tem de conhecer o que se passa ao seu redor e consigo mesma. Não há nada que a criança faça com mais empenho, determinação, esforço e prazer do que brincar. Brincar é uma atividade completa e complexa, que envolve o corpo, a linguagem, a cognição, as emoções e interações. E a criança vai aprender a brincar mais e melhor na medida em que brinca. Então, quanto mais brincar, melhor.
A importância do brincar tem sido bastante difundida entre educadores, pediatras e demais profissionais dedicados à infância. No entanto, na prática, parece se instaurar um dilema entre brincar e educar, entre brincar e aprender. Ainda que se fale muito da importância do brincar para o desenvolvimento integral da criança, para sua constituição psíquica, física e social, a escola muitas vezes cai no dilema de que brincar rouba o tempo de aprender.
Então, o que a criança aprende enquanto brinca? Ao brincar sozinha, a criança aprende a tomar iniciativa de buscar o que quer. Isso vale para o bebê que encontra seu próprio pé em seu campo de visão e o leva à boca repetidas vezes, até a criança maior que monta um cenário em seu quarto para uma brincadeira de princesa ou de viagem espacial. Ao brincar acompanhada, aprende a compartilhar experiências, negociar vontades, resolver conflitos e entra em contato com o saber do outro, seja adulto ou criança, por meio da fala, do gesto, da própria organização do cenário, ampliando seu repertório simbólico.
Escola é lugar de brincar
Se brincar é uma forma de compartilhar experiências e ampliar o universo simbólico da criança, é papel da escola promover o brincar, especialmente na educação infantil, mas também nos anos subsequentes. Para que isso seja possível, é muito importante que os gestores da escola abracem essa convicção e possam trabalhar no sentido de ampliar a compreensão dos pais e dos professores a respeito da importância do brincar.
A escola é um espaço de construção de saber coletivo e isso não vale só para os alunos, vale para os adultos também! Por isso, numa escola em que os gestores têm convicção de que brincar é importante, há mais tolerância para uma aparente bagunça na sala de aula, para barulho, risada e até improviso, pois o brincar envolve ação e criação. Escola deve ser um ambiente que potencializa a aprendizagem, a criatividade, a possibilidade de a criança pesquisar, conhecer, aprender por meio da brincadeira.
Em primeiro lugar, na escola precisamos planejar tempo e espaço para que a brincadeira aconteça. Se na rotina diária são previstas somente atividades dirigidas, com conteúdos e objetivos preestabelecidos, aulas com professores especialistas (inglês, educação física, artes, informática…), sobrando apenas 20 minutos ou meia hora para o recreio, colocamos a brincadeira como atividade secundária.
Para brincar, as crianças precisam de tempo. Tempo de observar o cenário e descobrir um graveto no jardim, um novo buraco no muro, as flores que caíram da árvore e que podem virar comidinha, poção mágica, perfume; tempo para explorar os brinquedos e outros objetos que foram disponibilizados no ambiente – é impressionante como algumas sucatas, um novo toco de madeira ou até as mudanças da natureza convidam a novas brincadeiras, novas criações.
As crianças também levam um bom tempo planejando a brincadeira, distribuindo papeis, montando o cenário, o que demanda alguma colaboração dos professores para viabilizar a amarração de uma cabana, a oferta de uma mesa que sirva de suporte para uma construção ou, ao contrário, abrir espaço na sala de aula para que as crianças montem algo grande – uma pista, uma fazenda, um castelo.
Quero destacar aqui que há diferença entre brincar na escola e brincar em outros lugares, como a praça, a casa ou o clube. O tipo de intervenção que uma professora ou professor faz na brincadeira da criança, desde que advertida/o das potencialidades do brincar, pode colaborar intencionalmente para uma extensão simbólica desse brincar a partir de ações que encorajem a experimentação e a interação com o outro.
Uma vez garantidos espaço e tempo para brincar, o papel dos professores é observar e intervir na medida da necessidade. Observar a brincadeira das crianças nos fornece uma série de dados sobre o grupo e sobre cada criança, o que nos permite planejar tanto intervenções na brincadeira em si, como planejar atividades que enriqueçam o repertório delas no que se refere aos elementos da cultura e aos conteúdos escolares. Se percebemos que todos os dias as crianças estão organizando brincadeiras de cavar a terra, catar folhas e pedrinhas, podemos convidá-las a cuidar mais ativamente da horta, promovendo uma sequência didática voltada para a área de ciências naturais. Se estão muito envolvidas em brincadeiras de luta, que incluem ações que geram conflitos e machucados, planejamos apresentar uma brincadeira corporal, com música, ritmo, massagem, ou histórias que possam trabalhar esses elementos em grupo, articulados a conteúdos de linguagem, corpo e movimento.
A brincadeira também coloca a criança diante de uma série de problemas a resolver e é muito interessante observar como cada criança se organiza diante desses problemas. Estou chamando de problema, por exemplo, quando um bebê quer colocar um tubo comprido dentro de uma caixa quadrada e o tubo não cabe. Ele fica um longo tempo tentando? Ele desiste de cara e vai procurar outra coisa? Ele já procura a professora com o olhar para pedir ajuda? Ele se frustra e chora? E isso é uma experiência física e matemática, que será mediada pela linguagem quando a professora disser, por exemplo, “Ah, tá muito pequena essa caixa, será que tem alguma maior?”. Também é um problema quando duas meninas querem ser a mesma princesa da brincadeira e é possível observar se conseguem negociar, se uma sempre abre mão de sua vontade pela outra, ou se precisam de uma mediação para chegar a um acordo.
O que observar enquanto as crianças brincam na escola ?
1 – Interação com a professora e com os amigos: fica muito apegada ao adulto ou vai brincar e só solicita eventualmente; brinca sozinha, acompanhada dos amigos ou ambos; varia as parcerias;
2 – Repetição: as brincadeiras variam ou são sempre iguais? A criança consegue negociar suas posições com os colegas ou é muito rígida em relação ao que quer e não aceita nenhuma interferência dos colegas ou professor; quer brincar sempre do mesmo jeito ou aceita novos elementos na brincadeira;
3 – Simbolização: em cada idade, predomina um tipo de brincadeira, mas é possível observar se a criança imita cenas cotidianas dos adultos, se entra no faz de conta, incluindo personagens e elementos da cultura infantil (histórias, canções, parlendas entre outros) em seu brincar; se faz uso da fala, cria narrativas.
4 – Uso da linguagem: essa observação diz respeito à aquisição de vocabulário e repertório verbal, mas principalmente da forma como se faz compreender e se interessa pela interação com o outro; ou seja, se há uma comunicação, ainda que pela imitação, troca de olhares, gestos.
Quando uma professora ou professor trazem uma queixa sobre um aluno – “João está muito agitado, não consegue permanecer na roda/ Joaquim está muito paradinho, só quer ficar deitado / Marina está batendo muito nos amigos…” – algumas perguntas podem nortear nossa ação: “Ele/ela está brincando? Como é a brincadeira? O que está aparecendo no brincar? Está brincando bem?”
E o que é brincar bem?
Brincar bem é quando a criança toma iniciativa de interagir com alguma coisa, está entregue de corpo e alma àquilo que está fazendo, encontrando ali um sentido e algum prazer. Qualquer ação ou comportamento só é chamado de brincadeira se realizado com real engajamento do sujeito que brinca. Não dá para brincar sem vontade, sem interesse, para corresponder à expectativa do outro.
É importante ressaltar que as crianças gostam de repetir brincadeiras, pois é uma forma de alcançar certo domínio da situação e se colocar numa posição mais ativa da que costumam ter na relação com os adultos. No entanto, nessa repetição devem surgir brechas para novas ideias, participação dos colegas e inserção de novos brinquedos. Quando a repetição é muito rígida e a mudança causa muita angústia e irritação na criança, também há um sinal de alerta para certa dificuldade de vivenciar a brincadeira como experiência de criação e elaboração.
As crianças apresentam em suas brincadeiras temas que podem preocupar os adultos – “vou te matar/ eu tenho uma faca!”, “a gente é namorado” ou se um menino diz “vou passar batom ou vestir uma saia”. É importante que o adulto possa tolerar tais experimentações na brincadeira, pois funcionam como uma investigação sobre o outro e sobre si mesmos, o que vale para qualquer tema.
Por fim, atividades como desenhar, pintar, cantar, dançar, ou seja, qualquer ação que permita a livre expressão da criança, desde que realizada de forma voluntária e com liberdade, pode ser considerada brincadeira. Se a criança está brincando bem, significa que está tranquila, disponível para aprender, para se relacionar com o outro, para desfrutar da convivência social com todos os desafios e conquistas que essa experiência pode promover.
Vitória Regis Gabay de Sá
Formada em Pedagogia pela PUC-SP, fez especialização em Psicopedagogia – Atendimento Clínico e Institucional pelo Instituto Sedes Sapientiae e formação em Psicanálise com Crianças no NEPPC. É Coordenadora Pedagógica da Jacarandá Berçário e Educação Infantil, em SP, desde 1994 e atualmente cursa Psicanálise no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Autora do livro Infância, liberdade e Acolhimento: Experiências na Educação Infantil em parceria com Tânia Rezende, publicado em 2018, pela Summus Editorial.
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