INFÂNCIA: A POÉTICA DO PRINCÍPIO

Na abertura de um livro de histórias reais com crianças, escrevemos:

Como escutar criadoramente a infância?

Como acolher e preservar sua sensibilidade, sua inteligência, sua imaginação?

As crianças vivem a linguagem nascente, o mundo que começa de novo.

A poética da infância desperta em nós,

adultos, a necessidade e o desejo

de uma vida criadora. (1)

           As crianças pensam por imagens, por sentimentos, por perguntas, por histórias, não por conceitos lógicos abstratos. Cotidianamente fazem comparações, analogias, metáforas, que pertencem à fonte da criação poética e literária. E questionam a existência, com indagações que estão na origem da filosofia e também das ciências.

            As crianças descobrem ao mesmo tempo a linguagem e o mundo, com olhar sempre de primeira vez, curiosidade e espanto, como nos primórdios.  As palavras e as coisas ficam de novo recém-criadas.

             A poética da infância precisa da nossa escuta, do nosso reconhecimento. Ela é também necessária a nós, adultos, para podermos educar criadoramente as crianças, acolhendo seu modo de sentir, pensar, expressar-se, como sujeito humano em formação, nessa dimensão da existência que é a infância.

             Como homenagem à essa escuta primordial, escolhemos quatro breves narrativas:

A LINGUAGEM NASCENTE (2)

           Como pequena constelação, as lembranças pousavam entre as palavras, na sala.

             Faz uns tempos, a menina tinha dado nome para uma estrela – Uáveren – e dançado para ela.

             Certa manhã, olhava o azul – sem uminha nuvem. Umas maritacas dão um voo rasante, próximas da sua cabeça, um susto nos cabelos. A pequena correu, de braços abertos para o inesperado:

  • Gente, elas passaram em cima do meu céu!

             Uma vez chamou a avó e o avô para brincar, disse que eles eram demaizinhos, perguntou se sabiam que gostavam muito dela. Outra vez, fez um desenho de presente: um coração com orelhas.

             Em uma tarde, ao tomar um remédio, fez movimentos sinuosos com o corpo, para traduzir a trajetória do comprimido. Explicou que ele estava espirilinguando  na garganta.

               Enquanto ouvia um conto de fadas, ficou abraçando atentamente   um unicórnio alado, de madeira azul envelhecida. Por vezes, ele relinchava, empinava, tentando sair em voo. Segurando as asas dele, ela esclareceu:

  •  É que ele é tímido de histórias.

                Um dia desses, desenhou três linhas, primeiros retas, meio paralelas, depois em leve arco, uma de cada cor. Ao perguntarem sobre o desenho, a menina respondeu, com seriedade de autora:

  • É o caminho de cada um. 

           Outro dia, permaneceu um tempo espiando os reflexos dos carros no vidro da janela, acima, acima, pelas paredes, para onde, para onde?

           Agora estava mais perto. Esteve morando longe. Queria muito ficar junto, morar ao lado – a um sopro da casa dos avós.

           Pegou na mão deles, animadamente, para irem ao apartamento vizinho, conhecer a Catarina.

            Indagada, indicou didaticamente, com claridade:

            – A Catarina é minha amiga, só que ela ainda é adulta.

            O homem procurou o caderno para anotar a frase, as palavras precisam ser preservadas. Sabe que as crianças, como a poesia, vivem a linguagem nascente. Novos sentidos são criados, outros se descobrem, e ainda outros fazem suas festas de ressurreição. O mundo pode ser escrito de novo.

                                                                                                  para Helena

IRMANDADES (3)

            A classe inteira veio andando junto, como um bando de passarinhos no chão.

            Cercaram a professora, abraço em cima de abraço, continuaram um só corpo pelo corredor.

            Na porta da escola da roça, entregaram uma pequena caixa de papelão, presente de despedida.

            Quando a professora tirou a tampa, lá dentro dois pintinhos espiavam espantados. Ao lado deles, um bilhete, escrito com diferentes letras:

          Professora, tem um pedido.

         Não pode separar os dois, eles são irmãos.

                                                                              para  Nádia e seus alunos

EMPATIA (4)

            O pequeno quintal – uma velha jabuticabeira, um pé de limão, alguns arbustos – era uma floresta para as irmãs gêmeas, que tinham quase três anos de idade. No fundo, ficava a casinha onde o avô escrevia e, de vez em quando, tomava café com um filhote de rinoceronte branco que vinha visitar o amigo contador das histórias.

            A tarde estava brusca. O céu com sombras de inverno.

            As meninas, cada uma equilibrando uma folha na mão, chamaram o avô, parceiro de travessias.

            Caminharam rente ao muro, até uma quina.

            Pediram ajuda para fazer uma mínima cabana.

            Com delicadeza, desajeitadamente, colocaram o telhadinho-folha:

                                     é para a minhoca  que mora ali,

                                     é para a minhoca não ficar com frio de noite.

           As crianças ainda pertencem ao mundo, ainda não se separaram  dele, têm admiração e empatia, pressentem a irmandade de todas as  coisas.

                                                                                        para Sofia, para Helena, para José Geraldo

           INTERLOCUTORA E INTÉRPRETE (5)

            Ritual de avó e neta, em passeio: fazer bolinhas de miolo de pão, muito mínimas, para levar a passarinhos. Dessa vez, para a Coruja Buraqueira que morava do lado de lá de uma cerca. A que buracava, buracava, buracava de dia e ia dormir só à noite.

            Ontem tinham chegado bem perto dela, ficaram se olhando, até que o farol de um carro assustou a ave, logo em voo.

            A menina indicou o plano: quando levarem os miolinhos, vão conversar com a coruja – mas precisam falar na língua das corujas, para ela entender. E treinaram os sons, vezes e vezes, mais e mais parecidos com os naturais.

            Não encontraram a buraqueira, nem em vulto.

            Na volta, viram várias galinhas d’angola, alarido alegre.

            A netinha e a avó, passo a passo, com silêncios, vão chegando perto, até o ponto propício para jogar as bolinhas, pequenos punhados, de leve, pelo ar.

            As galinhas começaram a gritaria, antes do corre-corre entre os miolos.

            A avó comentou:

                                  Acho que elas se assustaram.

            Interlocutora e intérprete, a menina explicou:

                                 Não, vovó. Elas estão agradecendo.

                                                                                       para Helena e para Katia

*   *  *

  1. INFÂNCIAS- histórias reais na poética dos dias. Editora Passarinho, 2019 (p.15)
  2. A POÉTICA DA INFÂNCIA – conversas com quem educa as crianças. . Editora Passarinho, 2019 (p.22,23)
  3. INFÂNCIAS- histórias reais na poética dos dias. Editora Passarinho, 2019 (p.19)
  4. INFÂNCIAS- histórias reais na poética dos dias. Editora Passarinho, 2019 (p.20)
  5. INFÂNCIAS- histórias reais na poética dos dias. Editora Passarinho, 2019 (p.45)

 Severino Antônio

Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor no Ensino Superior. Autor de livros de ensaios, poemas, histórias. Conselheiro do Instituto Alana, no projeto “Prioridade Absoluta: a criança em primeiro lugar”. Conselheiro do Instituto Rubem Alves. Um dos especialistas do filme documentário e  da série “O Começo da Vida”. Participou da Brazil Conference at Harvard & MIT(EUA), como orador principal na mesa dedicada ao tema “O Futuro da Educação no Brasil”. Palestrante do Ciclo Educar Hoje – A Importância da Escuta, SESC/SP. Participou do Café Filosófico, TV Cultura/Instituto CPFL, com Renata Meirelles, sobre o Brincar(22/12/2019). Contato: e-mail: fone:

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