Falando manhês com o bebê
Nas várias culturas do mundo, com raras exceções, as mães “conversam” com seus bebês empregando um registro de fala chamado manhês[1]. O manhês é constituído de desvios e modificações da fala dirigida aos adultos, cujos efeitos se revelam na simplificação do vocabulário, da sintaxe e da forma das palavras endereçadas à criança, mas também nas modulações da prosódia e da voz materna (FERNALD, 1985; FERREIRA, 1990, 2004).
A prosódia apresenta-se marcadamente acentuada no tocante à entonação (variações de altura da voz) e ao ritmo (variações de duração da cadeia falada), elementos que conferem às enunciações maternas uma característica melódica que atrai o bebê. Fisgado pela voz da mãe (possuidora de uma identidade ou assinatura vocal única) o bebê a distinguirá entre outras vozes e mostrará preferi-la. É por exercer uma espécie de sedução sobre a criança que o manhês a chama a responder aos apelos da fala a ela dirigida e a aproximar-se daquela que lhe endereça a palavra, a ela particularmente, sua mãe. É assim que a voz materna tem poder de invocação sobre o bebê, cujo efeito, pelo gozo que causa, é o assujeitamento da criança à linguagem. (DIDIER-WEILL, 2015)
Um chamamento ao bebê
Um bebê de um mês e doze dias, mostrando-se sonolento durante a mamada, abre a fecha os olhos seguidamente, até a boca desprender-se do seio materno. Atenta às manifestações da criança, a mãe lhe lança um convite (demanda): “Vamu arrotá, vamu”. A enunciação se caracteriza pela simplificação da frase, pela repetição de palavra, pela velocidade lenta de emissão e por uma ondulação melódica e ritmada com uma entonação que decresce no final da fala – traços prosódicos típicos do registro manhês, ao que se segue uma vocalização da criança.
Estudos realizados nesse campo vão mostrar como o bebê leva em consideração algumas “pistas” para entrar em cena como “falante”, ou seja, para oferecer uma resposta num determinado ponto, que não é aleatório. No caso do nosso bebê, a “pista” é fornecida pela queda da entonação no final da cadeia falada, uma queda esperada uma vez que a curva entonacional vai decrescendo até se interromper (MARCUSCHI, 2004).
A resposta da criança durante as primeiras interações (primeiros dias de vida do bebê) parece sobrepor-se à fala materna ainda durante a sua realização, antes, portanto, do final da enunciação. Mas, logo depois, na medida em que é chamada a participar, as respostas da criança vão se situando cada vez mais proximamente do ponto em que a enunciação é concluída, até atingi-lo. Observa-se também que o bebê não somente responde aos chamamentos maternos, mas ele próprio convoca a participação do seu cuidador primordial (Outro) tal como o falante que propõe uma conversação ou dá início a ela. Nos termos de Vivès (2012), a criança demanda um ouvido não surdo para escutá-la.
O trabalho materno de enlaçamento do bebê
A análise da construção de conversações desenvolvidas entre mãe e bebê mostra que, embora se produzam alterações na fala à qual a criança é exposta, tanto no que diz respeito aos segmentos linguísticos como aos elementos suprassegmentais (prosódia), a base da organização da estrutura dialógica adota o funcionamento discursivo ao qual o adulto está submetido. Ora, esse funcionamento depende da colaboração de, pelo menos, dois protagonistas (dois falantes), condição para a construção do enlaçamento mãe-bebê, gênese do que mais tarde se constituirá como laço social.
É assim que, apesar de a mãe se revelar uma “transgressora” do léxico e da sintaxe da língua, quando ela se endereça ao bebê ela o faz a partir da hipótese de que ele é um falante, seu interlocutor privilegiado, portanto, um sujeito, ainda que suposto. Será esta hipótese ou esta suposição antecipada que vai garantir ou propiciar o advento futuro de um “verdadeiro” sujeito, ou seja, a constituição subjetiva da criança e a estruturação psíquica esperada (FERREIRA, 1990, 2004)[2].
O trabalho materno de enlaçamento do bebê consiste então não somente em falar ao bebê mas, também, em falar por ele, emprestando-lhe voz e significantes para responder às demandas que ela lhe faz ou para responder a perguntas que ela também (se) faz a ele, interpretando suas manifestações, gestos, movimentos ou mesmo seu “desinteresse” em iniciar ou manter sua participação no diálogo. Nesse trabalho ininterrupto de interações e negociações está a origem e desenvolvimento do enlaçamento mãe-bebê, cuja organização é modelada de acordo com o padrão discursivo da linguagem.
Esse modelo discursivo se revela na organização sequencial dos turnos de fala, ocupados alternadamente por um e por outro falante, em obediência à regra universal das conversações “fala um de cada vez”. Submetida à linguagem e às leis que regem seu funcionamento, a mãe aponta o lugar do bebê no discurso (na estrutura conversacional), conforme a seguir:
Turno de fala 1 – É a mãe quem fala, do seu lugar de interlocutor do bebê.
Turno de fala 2 – É o bebê quem fala, seja por si mesmo, através dos modos de comunicação que lhe são próprios (vocalizações, direcionamento do olhar, sorriso etc.), validados pela interpretação materna, seja porque a mãe fala por ele.
Turno de fala 3 – A mãe volta a ocupar o turno de fala.
Turno de fala 4 – Turno de fala do bebê ou atribuído ao bebê.
Esse modelo pode ser alterado sem que se produza uma mudança de estrutura no funcionamento discursivo, quando é o bebê quem dá início ao processo conversacional, como na seguinte cena:
No final do segundo mês de vida, o bebê choraminga (turno de fala 1) enquanto a mãe prepara o seu banho. Dirigindo-se a ele, a mãe o acalenta: “Não, mainha tá aqui, pontu” (turno de fala 2). Nota-se um alongamento na primeira palavra, alongamento que se repete na última, sílabas proferidas com uma intensidade maior em relação às sílabas vizinhas, elisão de encontro consonantal tornando suave a sonoridade da fala e uma entonação que ora se eleva ora se abaixa causando uma ondulação musical. Quando a mãe conclui sua mensagem a criança interrompe seu choro (turno de fala 3). Em seguida, a mãe indaga: “Pontu?” (turno de fala 4).
Da sequência de turnos de fala, da alternância de falantes na ocupação dos turnos e dos modos de ocupação pode se extrair a seguinte conclusão: o manhês é uma produção compartilhada. Realizando-se como coprodução, dela emergem o lugar discursivo que conjuntamente cada um dos sujeitos constrói para o outro.
A estrutura discursiva das conversações das quais o bebê participa muito cedo graças à operação de alienação (primeiro momento lógico de constituição da subjetividade) determina a tomada da criança na dupla articulação da linguagem (eixos sintagmático e paradigmático), assujeitamento que depende de uma segunda operação (separação). Se no primeiro momento a criança se deixa alienar ao universo dos significantes e ao gozo materno dizendo “sim” ao Outro, a passagem para o segundo momento lógico de constituição da subjetividade depende de que o bebê possa enunciar “sim, mas nem tanto” (LACAN, 1998).
Por que mãe e bebê “conversam”?
Um dos primeiros estudiosos do registro de fala endereçado às crianças pequenas, C. Ferguson (1964), sempre se mostrou curioso acerca das possíveis razões que levavam as mães a falarem “baby-talk”[3] com seus filhos. Muito interessado, Ferguson decidiu conduzir uma série de entrevistas, durante as quais as mães eram convidadas a responder a seguinte indagação: “Por que você fala desse modo com sua criança?” Uma resposta prevaleceu: falar baby-talk causava prazer à mãe. Como sociolingüísta, Ferguson não percebeu o alcance e a importância desse testemunho. Mas é justamente a experiência de satisfação mútua (gozo) entre mãe e criança, revelada no manhês, que vai chamar a atenção de psicanalistas (FERREIRA, 1990, 2004).
A observação de diversas situações em que o bebê está acompanhado do seu Outro primordial (a mãe ou sua substituta) mostra como o manhês se intensifica em momentos de intenso prazer compartilhado (gozo). A mãe fala ao bebê em manhês porque sua criança lhe causa prazer (gozo), lhe satisfaz; o bebê responde porque sente prazer com o prazer materno bem assim em causar prazer à mãe. Ele não somente responde à fala (e ao olhar) gostoso da mãe, mas ele ativamente se coloca como causa do gozo materno.
O manhês passa a ser concebido em estudos de psicanálise como um importante instrumento de análise acerca da relação mãe-bebê (FERREIRA, 1990) e do seu papel na estruturação psíquica da criança. Grande parte das pesquisas sobre autismo também são beneficiadas pelo estudo psicanalítico do manhês, com desdobramentos e fortes repercussões na prática clínica.
Severina Sílvia Ferreira
Psicanalista, doutora em Linguística, pós-doutorado em Ciências da Linguagem. Membro de Intersecção Psicanalítica do Brasil, cofundadora do NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos. Professora dos cursos de Pós-graduação Psicanálise e Clínica com Bebês e O autismo e outras psicopatologias da infância e adolescência (Faculdade Frassineti do Recife). Coorganizadora do livro As interfaces da clínica de bebês (2011) e organizadora do livro O autismo e a questão da detecção precoce (2019). Autora de vários artigos publicados.
Contato: e-mail: ninarrecife@yahoo.com.br
[1] Manhês é o termo utilizado por De Lemos (1986) para traduzir motherese. Embora outras traduções tenham sido propostas, o uso do termo manhês acabou prevalecendo.
[2] O emprego do registro manhês pelas mães se dá de modo inconsciente.
[3] Baby-talk era como C. Ferguson chamava, em seus primeiros
estudos, a fala (infantilizada) dos pais dirigida à criança.