ESCOLAS PROTAGONISTAS E PRÁTICAS TRANSFORMADORAS

O QUE UMA ESCOLA PODE FAZER POR OUTRA?

          A prática da Educação Terapêutica (Kupfer, 2000), entendida como um conjunto de procedimentos terapêutico-educacionais dirigidos às crianças, a seus professores e a seus pais, visa ao restabelecimento e à sustentação da subjetividade da criança, especialmente àquelas com entraves estruturais em sua constituição psíquica (como as consideradas autistas e psicóticas). Impasses no estabelecimento de laços sociais, no percurso de escolarização e nos modos de aprendizagem dessas crianças levou o Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica em São Paulo, a construir parcerias com as escolas no acompanhamento terapêutico-educacional e nos processos educacionais inclusivos de diversos alunos. As parcerias com as escolas foram, desde o início, orientadas pela preocupação com a busca de fundamentos teóricos e princípios capazes de dar consistência e solidez às práticas escolares com essas crianças anteriormente excluídas do sistema regular de ensino, rumo a uma escola para todos, o que também incitou uma construção permanente de eixos teóricos capazes de auxiliar o trabalho dos professores nessa direção.

O PROFESSOR PRECISA SER INCLUÍDO PARA PODER INCLUIR

          Um dos fundamentos do trabalho com as escolas é a consideração da subjetividade do professor, ferramenta necessária para a construção de suas práticas pedagógicas, assim como condição para a consideração da singularidade de cada aluno no processo educativo. Uma das frentes desse trabalho da Educação Terapêutica é a reunião aberta de professores (Pesaro & Castro, 2017), que conta com a participação mensal espontânea de profissionais de escolas públicas e particulares, professores de classe, professores auxiliares, professores de salas de recursos, coordenadores pedagógicos, diretores de ensino e acompanhantes escolares, desde a educação infantil até o ensino médio. Em sua origem, em meados de 1994, antes mesmo de entrar em vigor a Lei de Inclusão no Brasil, essas reuniões eram coordenadas por uma equipe do Lugar de Vida denominada Grupo Ponte, que se encarregava de estabelecer e de sustentar uma “ponte”, uma “travessia”, uma interlocução entre o tratamento da criança e a escola que frequentava (Kupfer e Colli, 2005). Nessas reuniões, ao falarem sobre seus alunos e sobre os desafios enfrentados em seu cotidiano escolar, cada professor confronta-se com o seu próprio dizer (Bastos, 2005), o que lhes permite novos olhares e outras significações possíveis para os recorrentes “alunos-problema” ou “alunos de inclusão”. A interlocução sempre buscada entre o tratamento e a escolarização de crianças que apresentam entraves na constituição de seu psiquismo, permitiu considerar um fundamento do Lugar de Vida e de suas práticas institucionais: tratar educando e educar tratando.

O ENCONTRO ENTRE ESCOLAS POSSIBILITOU TROCAS E INOVAÇÕES EM SUAS PRÁTICAS

          A experiência na parceria com os educadores ao longo desses anos, levou-nos a propor em 2015 o início de um novo trabalho com as escolas, denominado Projeto Escolas Protagonistas (Kupfer, Patto & Voltolini, 2017), atualmente em sua terceira edição. No lugar de atender às demandas recorrentes de distintas escolas para que a equipe do Lugar de Vida fosse até elas auxiliando-as “na inclusão de alunos com autismo”, assim como nas relações com suas famílias, demandamos que tais escolas se encontrassem em um território terceiro. Assim, propusemos que viessem trabalhar conosco e, em conjunto, fossem discutidos os impasses na escolarização de alunos, as estratégias pedagógicas para enfrentá-los, as especificidades de sua alfabetização, as formas de sistematizar os conhecimentos e os saberes das equipes escolares e, as novas estruturas possíveis das equipes de apoio educacionais.

          A partir da constatação de que uma criança pode fazer muito por outra no âmbito dos grupos terapêuticos heterogêneos do Lugar de Vida (Kupfer, Pinto & Voltolini, 2010), uma perspectiva similar foi pensada em relação ao encontro entre educadores de distintas escolas, compondo um grupo que compartilha contextos parecidos, mas heterogêneos em vários aspectos. Identificam-se em alguns pontos e diferem em outros tantos. Assim, formulamos outra pergunta norteadora para o projeto: o que uma escola pode fazer por outra? Após quatro anos de percurso e mais de 20 escolas participantes, o projeto construiu uma metodologia de trabalho coletivo na qual o protagonismo de cada educador e de cada escola tornou-se o motor das práticas educacionais construídas do decorrer dos encontros. Constatamos que o encontro entre as escolas – uma escola ao escutar a outra – tem produzido efeitos de desnaturalização de práticas educacionais por vezes cristalizadas e que dificultam a criação de novas formas de ensinar e de aprender.

HÁ SINGULARES MODOS DE APRENDER, ASSIM COMO DISTINTOS MODOS DE ENSINAR

          O encontro com as diferenças entre elas auxiliou no reconhecimento de diferentes estratégias de ensino, assim como a constatação de que os alunos podem apresentar distintos modos de aprender, ainda que inusitados ou idiossincráticos. Impasses, dúvidas e o “não saber o que fazer” com um aluno autista ou com manifestações de sofrimento psíquico de jovens adolescentes na escola, foram, por isso, pautas de tantas discussões. Nessa direção, podemos dizer que os encontros entre as escolas foram orientados pela lógica e pela posição subjetiva dita “não-toda” (Lacan, 1972-37). A expressão não-toda alude à noção psicanalítica segundo a qual somos seres constituídos como faltantes, incompletos, o que por outro lado nos move na direção de buscar, ainda que ilusoriamente, essa completude, jamais alcançada. Ou seja, no campo escolar, cada agente do desenvolvimento e do processo educativo de uma criança (família, professores e terapeutas) sustenta um certo saber, e cada qual carrega também um não-saber sobre si e sobre o outro. São nesses intervalos que o saber da criança pode emergir e a partir dos quais cada educador pode se colocar em lugar de aprendiz, ao mesmo tempo protagonista de uma educação subjetivante para todos os seus alunos.

Cristina Keiko Inafuku de Merletti

Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da USP, Sócia-Membro do Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica SP, Docente Titular do Programa de Pós Graduação em Psicossomática e Desenvolvimento da Universidade Ibirapuera.

Contato: e-mail: criskeikousp@gmail.com

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