O gato que escolheu viver na gaveta
Dia 1
Minha história começa quando fui abduzido da rua para um apartamento no prédio onde circulava em busca de comida e abrigo… achava que estava seguro… Tudo mudou depois que cruzei o caminho de uma humana, e fui enganado com um truque sujo (e gostoso, admito) chamado “carne moída”… golpe baixo!… eu não conhecia aquilo, pois revirava lixo procurando restos, baratas e lagartixas pra comer… sim, a humana sabia que eu ia gostar daquela coisa e, como quem não quer nada, me ofereceu a iguaria… deixou que eu me aproximasse, sentisse como aquilo era bom e voltasse pra buscar o resto que estava no fundo de uma caixa… fiquei com um olho nela, e o outro nessa comida… assim que ela se distraiu com a chegada de um vizinho, corri pra abocanhar meu jantar… foi aí que dancei… a humana fechou a caixa, jogou um pano por cima e me trouxe pra cá… ela me colocou num quarto escuro e disse: amanhã a gente conversa… fechou a porta e sumiu… fiquei apavorado!
Nosso relacionamento já durava um tempo, é verdade… quase confiava nela, pois desde que nos vimos pela primeira vez, ela levava comida e água pra mim assim que o movimento na rua diminuía… me acostumei a esperá-la… o que nunca esperei foi ser traído como fui…
Dia 2
“Que lugar é esse? O que a humana vai fazer comigo? Como vou fugir?” Era só o que pensava. Passei a noite encolhido num cantinho… e chorei… pela manhã, ela apareceu com voz melosa achando que isso bastaria para conquistar minha confiança e selar nossa amizade… eu tentei fugir… já estava do lado de fora, no peitoril da janela, louco pra voltar pra rua… mas, cara, eram nove andares… calculei o salto e achei prudente voltar. Reclamei bastante e alto pra deixar bem clara a minha insatisfação. O que ela pensava? Eu tinha uma vida na rua… (OK, não era das melhores, mas era minha!) De repente, um lugar me pareceu seguro e achei uma abertura. Era escuro, desconfortável e quente, mas foi ali que decidi ficar: a gaveta da escrivaninha. Lá de dentro só ouvia: gatinho? Gatinho? Cadê você?… Decretei: aqui é o meu lugar! Não demorou muito pra ela me achar e… debochar do meu esconderijo, mas me deixou ficar…
Dia 5
Fui arrancado, de novo, do meu refúgio… (não adianta bufar, a humana não respeita meus protestos). Apesar da brutalidade, a causa era boa: comida cheia de molho, que eu adoro! De barriga cheia, enfrentei uma bola com penas, lutei com as pernas da humana e com a renda do pijama que ela usava. Ela dizia “ai, ai, ai” e repetia que meus dentes eram finos, mas não facilitei… já estou de papo pro ar, recebendo carinho na barriga e ronronando alto… daqui a pouco esquecerei tudo… e voltarei a bufar dentro da gaveta…
Dia 10
Ontem não passei muito bem… quase não comi e tive uns espasmos… Hoje, acordei jururu e fui extraído da gaveta para uma tal de “consulta médica” (em que me comportei como um lorde). O que eu tinha ontem? Não sei… mas hoje, não tenho mais! O doutor disse que estou ótimo, que tenho cerca de quatro meses e peso pouco mais de dois quilos. Quando ele perguntou meu nome, olhei pra humana e quis saber: “E aí? Vai continuar me chamando de gatinho?” Não sei se gosto, mas na minha ficha médica fui registrado como PITOCO… levei duas picadas, que nem senti, e disseram q fui imunizado contra muitas doenças… o médico avisou que eu poderia ter alguma reação e perder o apetite por conta dessas vacinas… até parece! Cheguei faminto!! A humana acha q eu tive uma crise de ansiedade… não sei o que é isso… O bom é que já passou!
Dia 20
A humana e eu temos uma rotina… Ela abre a gaveta, eu bufo, ela ignora meus protestos e me tira dali… traz comida fresca, limpa a privada e troca a água… enfim, faz tudo o que os humanos devem fazer para um gato, além de brincar comigo e me mimar com afagos e cafunés… Há alguns dias ela me apresentou aos outros moradores da casa. Foi rápido, mas descobri que não sou o único da minha espécie a viver aqui… nos cheiramos, bufamos e voltamos cada qual pro seu canto… Aqui vive Tonho, um cara grande, preto com um coração branco desenhado no peito… e uma tal de Lola, que é uma tipa intratável. Não gostou de me ver e fez questão de não disfarçar sua irritação. Senti que não vai ser fácil conquistá-la, mesmo com todo meu charme…
Dia 35
A mancha que Tonho traz no peito diz muito sobre ele: é um cara tranquilo, acolhedor e em poucos dias nos tornamos amigos. A outra é a Tola, digo, Lola… minha primeira impressão não mudou, ao contrário: ela de fato não me suporta e não me quer aqui… problema dela, que vai ter de lidar com isso, pois a humana já foi conquistada e está caidinha por mim… também quase gosto dela e já nem bufo mais quando a gaveta é aberta! A Lola pensa que a humana é só dela… não consegue entender que amor é algo que não se divide, se multiplica… (cafona, né?) É a humana quem repete isso… mas a bichana deve ser surda… ou é só muito possessiva…
Dia 65
Chove lá fora, mas não ligo mais pra isso… Já não preciso pensar em onde achar comida ou como me proteger… a vida mudou pra melhor… não que seja fácil… não é… conviver com a Lola é um outro tipo de aventura! Hoje, brigamos menos, mas tenho de estar sempre alerta! Tonho é um aliado, e às vezes coloca sua irmã pra correr… (adoro!).
A humana me amassa, aperta e afofa o tempo todo… haja! Mas quando está na cozinha, em torno da pia, sempre me dá alguma coisa gostosa… por isso, rodeio as pernas dela, dou cabeçadas, jogo charminho… aí surge um frango, uma carne, um sachê. Gosto dessa vida. Pra dizer a verdade, já faz tanto tempo que divido a casa com a humana que quase esqueci o que houve antes disso…
Dia 100
O tempo esfriou e eu passei o dia na cama da humana com a coberta que ela me deu e carrego pra baixo e pra cima…”amasso pãozinho” e me ajeito antes de um cochilo. A humana se derrete ao ver-me pela casa arrastando a manta com a boca… me olha com cara de boba e faz óiiinnnn… esse som me avisa: “fuja”, pois na sequência ela vem me apertar e querer pegar no colo. Muito difícil lidar com as fêmeas daqui: uma é excesso de carinho, a outra, de patadas…
Dia 289…
Já faz quase um ano que fui tirado da rua… É a humana quem faz essas contas… Já confio um pouco mais nela. Continuo detestando quando me pega no colo, e isso não vai mudar, mas de vez em quando me aprochego e junto meu corpo ao dela… A humana é tão apaixonada que se derrete, por isso, uso esse recurso com parcimônia… mas admito que é muito bom: cafuné pra cá, carinho pra lá… meu motorzinho interno fica louco, faz tanto barulho que é possível me ouvir à distância… Gosto que a humana saiba o quanto é prazeroso estar em sua companhia…
Paula Medeiros
Jornalista com mais de 30 anos de experiência em jornais, como Folha de S.Paulo, Estadão e Jornal da Tarde, e psicanalista membro do departamento de Psicanálise com Crianças do Sedes Sapientiae.
Contato: e-mail: medeirospaula@gmail.com Telefone 11 996124684
Rafael Victor é um artista versátil que está há mais de 20 anos no mercado, criando lustrações publicitárias e infantis, logotipos, cartazes, capas de livros, projetos gráficos de embalagens e anúncios.
Como ilustrador, já trabalhou com editoras em livros infantis, já ilustrou materiais para peças infantis e diversos materiais pro mercado editorial. Já atuou como diretor de arte em agências de comunicação, encabeçando projetos de grandes clientes, como Sylvania, DirecTV e os canais FOX, FX e National Geographic, entre outros.
Contato: e-mail: rafaelv@gmail.com Telefone: 11 98017.8234 (oi)