A experiência que compartilho foi vivenciada como psicopedagoga, ao longo de quatro anos no centro de Educação Infantil na rede pública na cidade de Londrina-PR. Trago algumas considerações sobre o trabalho desenvolvido e a possibilidade de uma prática de intervenção precoce dentro do contexto da creche. Considero, porém, primordial reconhecer e situar minha trajetória com a prática clínica. O meu encontro com a psicanálise se deu há 17 anos ao ingressar a equipe interdisciplinar do Espaço Escuta organização do terceiro setor (OSCIP) que atua em pesquisa e formação atendendo criança com transtorno global do desenvolvimento. Nesse período, minha trajetória profissional estava vinculada ao Ensino Especial da rede municipal de educação, como parte da equipe multiprofissional itinerante, fazendo atendimento em Sala de Recursos. Durante esse trabalho na rede, em cada análise sobre os fatores que interferem na aprendizagem, uma das questões que me levava a refletir era o como seria importante um trabalho preventivo na primeira infância, por entender com a experiência clínica, o quanto é possível identificar e intervir a tempo, podendo evitar problemas futuros no desenvolvimento e os consequentes atrasos ou obstáculos na aprendizagem. Cada vez mais o sistema educacional na rede pública municipal precisa dar conta da amplitude das transformações que um processo como esse implica e foi assim que chegou até mim um convite da gerência da secretaria de Educação Especial para uma experimentação de um projeto piloto de AEE – Atendimento Educacional Especializado na Educação Infantil. A necessidade surgiu em razão de uma demanda acentuada de crianças e bebês com diagnósticos e entre eles vários de autismos. Inicialmente o objetivo era atuar junto à equipe pedagógica para um suporte diário atendendo às necessidades da instituição no sentido de sustentar uma efetiva proposta de inclusão. Aceitar esse convite foi também considerar a oportunidade de iniciar um trabalho de base já que teria acesso junto aos professores e aos bebês, estendendo o olhar de cuidado no processo da constituição psíquica e atenção integral ao desenvolvimento infantil.
UMA CONTRIBUIÇÃO POSSÍVEL DA PSICANÁLISE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
O projeto piloto de AEE foi desenvolvido no período entre 2015 e 2019 no Centro Municipal de Educação Infantil Valéria Veronesi – Super Creche, considerada a maior do município com 420 alunos matriculados divididos em 24 turmas. Antes de apresentar a proposta do projeto, foi fundamental situar o trabalho que estava sendo desenvolvido na cidade e em municípios abrangentes com a prevenção na rede pública, tendo a psicanálise como referência em saúde mental infantil. Importante ressaltar que ao longo de todo esse trabalho, a direção e equipe pedagógica foram peças fundamentais nesse processo, abrindo espaço em reuniões para a transmissão teórica acerca da articulação entre desenvolvimento infantil e o processo de constituição subjetiva, com as possíveis aplicações desta teoria à prática. Durante todo o percurso, a finalidade neste trabalho foi de reconhecer e respeitar o saber pedagógico dos profissionais que ali desempenhavam o seu papel e por saber que na formação acadêmica os aspectos de saúde mental geralmente não são considerados, foi oferecido um trabalho de parceria com o objetivo de somar conhecimentos na conciliação de uma prática de inclusão e cuidados preventivos. A Metodologia IRDI foi um dos instrumentos utilizados para a ampliação do olhar de cuidado para além dos referenciais sobre os marcos do desenvolvimento, refletindo com o professor acerca da sua participação na constituição psíquica, podendo considerar a criança desde bebê um sujeito de desejo o que faz toda a diferença quando o professor consegue ouvir, diante do choro de um bebê, um pedido, e a ele dar uma resposta produzindo marcas simbólicas – supondo ali um sujeito – um dos quatro eixos que balizam a constituição da subjetividade conforme o protocolo citado. A esse respeito, Mariotto (2003) afirma que ao tentarmos construir uma proposta de discussão sobre a questão da articulação entre educação e psicanálise e sua inserção nas instituições que atendem a pequena criança, estamos apostando em uma nova possibilidade de compreender o processo de subjetivação e também de acompanhar o desenvolvimento de crianças de 0 a 2 anos no ambiente de creche em que se inclua o atendente de creche enquanto ser de linguagem e, portanto, de desejo.
A IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO: LIMITES E POSSIBILIDADES
Os desafios enfrentados para a implantação do projeto foram enormes e não havia para esse trabalho nenhum modelo prévio, tudo estava por se construir. A única certeza inicial era a existência de uma demanda real de crianças com seus diagnósticos de inclusão e outra demanda com as crianças que ainda não haviam sido avaliadas, mas que estavam apresentando sinais de dificuldades, bebês com sofrimento prolongado de adaptação na rotina, com recusa alimentar e transtorno de sono, bebês com infecções de repetição e sinais de apatia e ainda, as crianças em situação de risco e vulnerabilidade social. Com o passar do tempo o trabalho foi acontecendo, e enquanto caminhava pela instituição, mantinha-me disponível para as interlocuções, o que favoreceu que a palavra pudesse circular, tanto com professores, quanto entre as crianças. Através de uma agenda cuidadosamente organizada pela equipe pedagógica foi possível acolher os pais, professores, crianças e especialistas para uma escuta na qual em muitas ocasiões era solicitada por eles mesmos, seja para falar das dificuldades, ou para contar dos avanços alcançados com as crianças. Com a possibilidade de estender esse novo olhar em parceria com a família surgiu a Escola de Pais, projeto articulado pela direção, oferecendo um espaço de encontro mensal no final da tarde, para um diálogo a respeito das questões relacionadas às dúvidas e dificuldades no desenvolvimento dos seus filhos, permitindo uma acolhida coletiva e promovendo maior aproximação e troca entre os pais e a instituição.
REFLEXÕES A RESPEITO DO TRABALHO
Compartilhar da experiência e resultados de trabalho desenvolvido dentro da creche, nos possibilita algumas reflexões:
– A importância e a necessidade de um programa de intervenção precoce, na educação básica, dentro da rede pública de ensino, por profissionais ou equipes especializadas em saúde mental na primeira infância no acompanhamento ao professor e a família, junto ao desenvolvimento integral da criança.
– O quanto é possível, através do olhar atento da professora, intervir a tempo quando o bebê dá sinais em seu corpo que algo não vai bem, fazendo toda a diferença nos encaminhamentos para avaliação e acompanhamento individual dentro da própria instituição ou sendo encaminhados pela profissional de referência para os serviços de saúde quando necessário.
– A possibilidade de acolher a pequena criança em processo de inclusão para além do diagnóstico, numa aposta para que desenvolva as aquisições necessárias ao seu desenvolvimento, dando a ela um lugar na creche onde possa se reconhecer e ser reconhecida na posição de criança enquanto sujeito de desejo.
E finalizando, vale destacar que ao caminhar por todos os ambientes e espaços da creche, desde as salas, refeitórios, no parque, no pátio, na hora do banho, na troca de fraldas, pelo berçário durante as refeições, no horário das mamadeiras e do soninho e na hora do brincar, conseguia, na posição ocupada pelo manejo transferencial, testemunhar um trabalho que estava sendo construído, para além do atendimento às necessidades e atividades pedagógicas, podendo chamar de uma prática estruturante, dentro de uma creche que verdadeiramente promove uma inclusão de qualidade, implicada com a criança em todo o seu processo de desenvolvimento.
Deibe Barbosa de Moraes
Psicopedagoga Clínica e Institucional pela UEL-PR, Especialista em Educação Especial UNOPAR-PR, Especialista em Estimulação Precoce e em “Clínica interdisciplinar dos Problemas do Desenvolvimento na Infância e Adolescência” – CENTRO LYDIA CORIAT – RS, Docente no Curso de Inter e Transdisciplinar na Instituição ESPAÇO ESCUTA – Londrina-PR. Atendimento clínico de bebês e crianças em consultório particular.
Contato: e-mail: deibeba@hotmail.com Telefone: 43 99997 1931.