O lar, lugar seguro e protegido, amparado pela figura dos pais, é um direito fundamental do bebê humano e imprescindível para que o sujeito se constitua. Nossa primeira casa é, na verdade, a barriga de nossa mãe. Após o nascimento, saímos dessa casa para encontrar morada no colo de alguém.
O cuidado que vem desse colo nos permite adquirir aquilo que em psicanálise chamamos de psiquismo. Para Winnicott, o colo é o que instaura no bebê a capacidade de ser constituído psiquicamente, de encontrar morada em seu próprio corpo e ter a sensação de pertencimento. Nosso corpo é, por isso, uma conquista, facilitada e possibilitada pelo acolhimento de um outro, que deve ser suficientemente cuidadoso e responsável.
Muitas vezes a família de origem da criança não é capaz de provê-la de um cuidado adequado. Quando há presença de maus-tratos intensos e ausência de cuidados básicos é necessário, como medida excepcional, a busca de uma nova família para a criança. A adoção é, nesse sentido, uma forma de encontrar uma nova morada para a criança ou adolescente que teve em seu percurso uma experiência de lar deficiente, disruptiva, que atrapalhou seu desenvolvimento, sua constituição como sujeito e sua sensação de fazer parte de uma comunidade.
Perfil das crianças, perfil dos pretendentes:
No Brasil, a adoção é uma cultura em construção, da qual faz parte nossa história recente, em que diversas crianças foram informalmente “adotadas”, aos modos de um “pegar para criar”, costume de reflexos coloniais que ficou conhecido como “adoção à brasileira”.
Essa realidade se alterou, sobretudo a partir das políticas de proteção à infância, estruturadas com a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. A cultura foi se modificando para que se tome como referência fundamental a busca de uma família adequada para a criança e não mais a busca de uma criança para uma família que estaria incompleta. Em contraste com a falsa impressão de que há muitas crianças para serem adotadas, a partir de uma junção imprecisa no imaginário geral entre pobreza e abandono, encontramos nos dados do Cadastro Nacional de Adoção uma quantidade bem maior de pretendentes do que de crianças disponíveis para adoção: existem hoje no Brasil 4.587 crianças cadastradas para serem adotadas e 42.459 pretendentes cadastrados para adoção
Esses dados revelam que há nove vezes mais habilitados para a adoção do que crianças disponíveis, o que demonstra como a prática de adoção vem fazendo, cada vez mais, parte da cultura brasileira. Entretanto, o fator idade parece ser o dado mais relevante para explicar o fato de haver tantas famílias na fila de pretendentes para adoção e tantas crianças sem família: 89,25% dos pretendentes tem preferência por crianças que tenham menos de 8 anos e, paradoxalmente, 90% das crianças tem 8 anos ou mais. Além da idade, outro fator que distancia o perfil de crianças disponíveis e pretendentes habilitados é a criança ter ou não irmãos: enquanto 60% das crianças disponíveis tem irmãos, apenas 38% dos pretendentes desejam adotar grupos de irmãos.
No mesmo Cadastro, quando verificamos as estatísticas dos pretendentes à adoção internacional, ou seja, pretendentes que residem fora do Brasil, constatamos que, de 203 indivíduos habilitados hoje, quase 80% deseja crianças entre 8 e 12 anos de idade. Isso não significa que os estrangeiros preferem crianças mais velhas, mas sim que, ao se habilitarem para adotar uma criança do Brasil, levam em consideração o perfil das crianças aqui disponíveis. Ainda assim, mesmo na adoção internacional, percebe-se uma drástica queda de pretendentes para crianças e adolescentes com mais de 12 anos. Embora o número de estrangeiros habilitados seja baixo em relação aos habilitados residentes no Brasil, a adoção internacional se configura como uma modalidade que permite resguardar, quando não foi possível encontrar uma família em território nacional, o direito considerado mais fundamental da criança: ter uma família, ter um lugar para crescer e se desenvolver plenamente.
O que é adoção internacional?
A adoção internacional consiste na colocação de crianças ou adolescentes, órfãos ou destituídos do poder familiar, em famílias residentes fora do Brasil. Essa é uma medida excepcional, tomada apenas quando são esgotados todos os recursos para manutenção da criança na família nuclear ou extensa (tios, avós, parentes próximos) e, ainda, apenas se não foi encontrado pretendente habilitado residente no Brasil ou após fracassos sucessivos em adoções nacionais. Todo esse processo de tentativas de encontrar uma família para a criança é longo e muitas vezes, prolonga-se, por anos, o que contribui para que a maioria dessas crianças, adolescentes e grupos de irmãos estejam fora do perfil desejado pelos pretendentes brasileiros. Entretanto, a colocação apressada de uma criança em família adotiva também pode ser traumática, pois uma adoção fracassada pode ser mais prejudicial do que a permanência em uma instituição de acolhimento bem estruturada.
A adoção internacional é, portanto, um recurso utilizado apenas quando todos os outros fracassaram, ou seja, quando os pais faleceram ou a família de origem da criança, tanto nuclear quanto extensa, foi considerada inapropriada para cuidar da criança ou do adolescente e quando não houve sucesso em adoção nacional. A história das crianças encaminhadas para a adoção internacional é marcada por abandono, negligência, violência física e/ou sexual, anos de institucionalização e experiências frustradas de reinserção na família de origem e de colocação em famílias adotivas, as chamadas “devoluções” ou “desistências”. Tais circunstâncias desmantelam a estrutura subjetiva dessas crianças, o que demanda um manejo firme, empático e bastante cuidadoso por parte daqueles que articulam as ferramentas de proteção à infância e à juventude (juízes, promotores, assistentes sociais, psicólogos, educadores e demais profissionais).
Os países que mais realizam adoções no Brasil atualmente são a Itália, a Espanha e a França. Para que possam realizar as adoções, os países estrangeiros possuem organismos credenciados no Brasil, que fazem a ponte entre as famílias habilitadas nos países estrangeiros e as Comissões Estaduais Judiciárias de Adoção Internacional (CEJAI). O que regulamenta a adoção internacional é a Convenção de Haia, de 1993, relativa também à proteção das crianças e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Cada organismo credenciado para mediação da adoção internacional é supervisionado pela ACAF (Autoridade Central Administrativa Federal) e pela Polícia Federal.
É válido destacar que o número de adoções internacionais vem caindo de ano a ano, embora não se tenha ainda dados suficientes para compreender a razão dessa queda: entre 1999 e 2012 a média anual era de cerca de 300 crianças. Em 2017 foram 105 e em 2018, 67. No ano passado foi registrado o menor número de adoções internacionais: 61. Em 2020 com a pandemia de COVID-19, a probabilidade é de que o número de adoções seja ainda mais baixo, já que países como a Itália, que corresponde a 80% das adoções internacionais, foi um dos que mais sofreu com a pandemia.
E depois que a criança sai do Brasil?
A adoção internacional não é capaz de suprir a necessidade de encontrar famílias para as crianças e adolescentes abrigados hoje no Brasil, mas é um recurso válido quando não há outra saída. Durante os dois primeiros anos após a conclusão do processo de adoção internacional, os organismos precisam enviar relatórios pós-adotivos a cada seis meses, somando quatro relatórios, o que faz parte de um processo de acompanhamento dessas adoções monitorados pelas CEJAIs e também pela ACAF. Nesses relatórios, é possível encontrar informações sobre o estado de saúde da criança, sobre seu crescimento físico, sua adaptação ao novo ambiente familiar, sua inserção na escola, seu desenvolvimento com a nova língua.
Através do acompanhamento pós-adotivo dessas crianças é possível perceber como são bem sucedidas as adoções dessa modalidade. É possível constatar como a mudança de ambiente, a nova casa, a nova família dedicada e responsável são capazes de mudar a experiência de cada criança adotada. Essa criança passa a fazer parte da comunidade e encontra na nova família uma base para crescer e se desenvolver com segurança, carinho e cuidado. Um novo colo, uma nova chance para habitar o mundo.
Quando chegam ao novo lar, as crianças passam por um período de adaptação antes de iniciar a escola, para que a integração com a família ocorra antes que haja novas exigências. O seu lugar na família começa a ser estabelecido ainda durante o estágio de convivência no Brasil, mas é na nova casa, no novo lar que, aos poucos, esse lugar vai sendo construído e fortalecido, para que a criança comece a incorporar novos capítulos à sua história.
A cultura de adoção, que vem sendo construída no país, deve permitir que crianças e adolescentes tenham resguardados e garantidos o direito de pertencerem a uma família, de serem bem tratados, de serem protegidos para poder brincar, sonhar e viver. Afinal, todo ser humano precisa de um lugar a partir do qual se identifique como sujeito, que faça parte de uma comunidade, conte sua história. Na adoção internacional isso ocorre em outro país, em um novo endereço. Entretanto, o que deve ser enfatizado é a qualidade do novo colo e garantia do novo lar! Um lugar para recomeçar.
Érica Espírito Santo
Psicóloga e psicanalista em consultório particular. Representante nacional (no Brasil) da Confederação Francesa de Adoção (COFA-COGNAC). Acaba de defender (março/2020) sua tese de doutorado “Adoção tardia e internacional: uma análise psicanalítica a partir de três relatos autobiográficos”, no Programa de Pós-graduação de Psicologia da UFMG.
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