A Saúde Mental na infância e a rede pública de atenção.

Breve histórico:

         Há três décadas estamos diante de um importante aumento dos problemas de saúde mental na infância, a ponto de estarmos frente a duas epidemias de transtornos mentais, a de Transtorno do Espectro do Autismo e a de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, que muitas publicações e análises têm advertido para o fato de serem epidemias de diagnósticos, mas que representam no mínimo uma crescente demanda para cuidados com problemas de desenvolvimento e constituição subjetiva na infância e adolescência. Por outro lado, constatamos que até a década de 90 não existia uma rede de atenção psicossocial pública para a atenção à infância e à adolescência no Brasil.

         Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na década de 90, a atenção à saúde dos brasileiros passa a ser única, integral e pública. Os direitos da infância e da adolescência passam a ser obrigação do Estado, sendo a infância reconhecida e concebida como plena de direitos à proteção, à educação e à saúde. As discussões sobre as políticas públicas para a saúde mental infantojuvenil e seus dispositivos passam a fazer parte dos desafios nas políticas de saúde.

         A partir da década de 90 a reforma psiquiátrica para a infância vai interferir nesse cenário, constituindo um dos ramos da reforma psiquiátrica para os adultos, e resultou na implantação de serviços e dispositivos de cuidados para substituir a rede manicomial, voltada para os adultos, e a rede de escolas especiais, voltadas para crianças, ambas amplamente criticadas por seus aspectos desumanos e de segregação social do sofrimento psíquico, além de serem parciais, pois focavam apenas em um nível do cuidado, não sendo, portanto, integral, nem territorial. A reforma vai criar então equipes de saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde e os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis para acolhimento dos casos mais graves. A Rede de Atenção Psicossocial Infantojuvenil vai ser progressivamente ampliada, acompanhando os princípios fundamentais do SUS: integralidade, territorialidade e longitudinalidade.

            Outra política pública importante ocorreu na mesma época com a implantação de uma política de inclusão das crianças com graves problemas de saúde mental nas escolas públicas, incorporando o setor da educação na rede, que juntamente com os dispositivos do ECA, tais como os Conselhos Tutelares, o Judiciário e os Abrigos, vão constituir a Rede Intersetorial de Atenção Psicossocial Infantojuvenil.

         A saúde mental vai se tornar então uma das mais importantes prioridades para a saúde da criança e a capacitação de pediatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, bem como das Equipes de Saúde da Família, na detecção e intervenção precoce dos problemas de desenvolvimento e constituição da subjetividade na infância são implementados.

         Nesse caminho os sinais de risco para a saúde mental passam a ser integrados à Cartilha de Saúde da Criança, mobilizando os profissionais da atenção básica para identificar, intervir ou encaminhar para os Capsij (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil) casos em idades cada vez mais precoces, atendendo ao paradigma de que quanto mais precocemente se atua, maior a possibilidade de reversões e de bons resultados nas intervenções, apostando sempre na plasticidade e na reversibilidade, característica da infância.

A Rede de Atenção Psicossocial para a Infância.

           A Rede de Atenção Psicossocial para a Infância e Juventude tem seu primeiro nível nas Unidades Básicas de Saúde. Essas são organizadas com equipes do programa de saúde da família, e estão apoiadas pelos NASFs, que são núcleos de apoio à saúde da família, com especialistas de diversas orientações, mas com a função de supervisionar e capacitar as equipes básicas no cuidado de casos identificados. Os NASFs são articulados aos CAPSij e aos CER (Centro Especializado em Reabilitação) que acolhem os casos mais graves e as ações intersetoriais, com a educação, assistência social e o Judiciário. Essa Rede tem base territorial, o que facilita a integração das ações nos projetos terapêuticos caso a caso, o que é chamado então de Projeto Terapêutico Singular (PTS).

              A experiência mostra que devemos atuar de forma territorial, ou seja, com dispositivos e equipes de uma dada região, de forma integral, ou seja, acolhendo as demandas sem discriminá-las e incorporando ao projeto terapêutico os profissionais envolvidos, de forma intersetorial, além de ser longitudinal, ou seja, com ações de complexidade crescente, mas sempre apoiadas em um seguimento ao longo do tempo, pois na infância os problemas simples e os problemas graves se apresentam com frequência com os mesmos sinais. Além disso, intervenções simples e pontuais podem ter um efeito muito importante, o que só pode ser verificado a posteriori.

             Dispositivos de cuidado, tais como as consultas terapêuticas, os atendimentos breves e as terapias mais longas, são utilizados de acordo com cada caso e de acordo com sua resposta às intervenções, procurando sempre integrar ao PTS os agentes intersetoriais, principalmente da educação.

               Para a integração das ações e a capacitação dos profissionais de forma permanente, utiliza-se na rede de atenção psicossocial o matriciamento, que consiste em reuniões dos profissionais de vários equipamentos, especialidades e setores, todos implicados no caso que, conjuntamente com a família estabelecem as intervenções a serem implementadas em cada PTS (Projeto Terapêutico Singular), o que sustenta a dimensão interdisciplinar e evita a fragmentação do cuidado.

A interdisciplinaridade e a teoria sobre a constituição do sujeito.  

         Além da falta de equipamentos e profissionais para comporem a Rede de Atenção em cada território, o que se tem observado nos últimos anos é a existência do que chamamos de um caos conceitual determinando um conflito entre várias concepções sobre os determinantes do sofrimento psíquico na infância e adolescência, com uma crescente e preocupante interferência de concepções reducionistas e biomédicas e a crescente medicalização das condutas.

         A clínica com crianças tem como essencial o fato de ser transdisciplinar e, portanto, articular muitos profissionais e muitas concepções sobre a constituição humana, mas principalmente ter como princípio considerar a criança um sujeito em pleno processo constitutivo, com grandes possibilidades de um devir na diversidade. É necessário levar em conta a plasticidade e a potencialidade do ser humano, principalmente na sua origem, para enfrentar e superar de forma singular os problemas no caminho da humanização, desde o nascimento até a finalização da constituição de sua subjetividade e sua inserção na cultura. Esse caminho é diferente para cada sujeito e devemos evitar os efeitos negativos das profecias realizadoras e dos diagnósticos estigmatizantes.

         Entre as disciplinas que se colocam nesse campo interdisciplinar e transdisciplinar, tendo como objeto a constituição de um sujeito na criança, desde as origens, a Psicanálise ocupa um importante papel, identificando três eixos fundamentais: o eixo pulsional, que desloca o organismo infantil da ordem instintiva para a ordem pulsional, desejante em relação ao outro cuidador, e o eixo relacional, que aponta para o fato de que um bebê não existe sem a sua relação com o outro semelhante e o eixo intersubjetivo, das identificações psíquicas.

Wagner Ranña.

Pediatra, Psiquiatra e Psicanalista. Professor do Curso de Psicossomática Psicanalítica e do Curso de Clínica Interdisciplinar da Primeira Infância do Instituto Sedes Sapientiae. Membro dos Departamentos de Psicossomática Psicanalítica e Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae.

Contato: e-mail: wranna@ uol.com.br Telefone:  11 991261934.

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