A Potência do Grupo Psicoterapêutico com Crianças

Somos psicoterapeutas voluntários do Projeto de Atenção à Infância (PAI), um grupamento que integra a clinica psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, e que se debruça sobre o atendimento de crianças e seu entorno. Em nossa prática, os grupos psicoterapêuticos psicanalíticos – realizados sempre por uma dupla de terapeutas – têm se mostrado um dispositivo potente de atendimento a crianças. Ao propormos essa modalidade de trabalho com os pequenos, fazemos a aposta de que o laço horizontal pode proporcionar deslocamentos da repetição dos sintomas, ocasionando mudanças psíquicas importantes que se atualizam nas relações com os pais, com outras crianças, com o próprio corpo e com a aprendizagem.

De um modo geral, ainda que tenhamos uma clínica alicerçada nos pressupostos teóricos mais ortodoxos que norteiam a psicanálise com adultos, há especificidades no trabalho com crianças, principalmente porque estamos lidando com um sujeito ainda em constituição, processo que se dá fundamentalmente na alteridade. É esse então o ponto de partida para todas as nossas ações no que se refere ao atendimento de crianças.

Dessa forma, a necessidade de envolver os pais no tratamento, a escolha por produzir um dispositivo que favoreça as trocas entre as crianças (a saber, o colocá-las em grupo) e a direção das nossas intervenções partem dessa mesma perspectiva e buscam favorecer a emergência de possibilidades de afirmação da subjetividade e da expressão do desejo.

Constituir-se uns com outros

Freud se perguntava se haveria uma espécie de “instinto gregário” desde cedo no pequeno humano. Conclui, em Psicologia das Massas, que algo semelhante a um sentimento de grupo só vai se desenvolver nas crianças com a chegada dos irmãos, longe do contato dos filhos com os pais, em uma espécie de “reação à inveja inicial com que a criança mais velha recebe a mais nova”. Diz Freud: “o filho mais velho certamente gostaria de deixar de lado seu sucessor, mantê-lo afastado dos pais e despojá-lo de todos os seus privilégios; mas, à vista dessa criança mais nova (como todas que virão depois) ser amada pelos pais tanto quanto ele próprio, e em consequência da impossibilidade de manter sua atitude hostil sem prejudicar-se a si próprio, aquele é forçado a identificar-se com as outras crianças. Assim, no grupo de crianças desenvolve-se um sentimento comunal ou de grupo, que é ainda mais desenvolvido na escola.

A primeira exigência feita por essa formação reativa é de justiça, de tratamento igual para todos. Se nós mesmos não podemos ser os favoritos, pelo menos ninguém mais o será”. Ou seja, trata-se aqui da transformação, da substituição do ciúme por um sentimento grupal, que acontece tanto dentro da família (no quarto das crianças), como também na escola.

Podemos concluir então que, em se tratando de crianças neuróticas, o fio identificatório seria trançado por conta daquilo que lhes falta – ser objeto do amor total dos pais, o reconhecimento que são atravessados pela castração – por mais barulho que esse reconhecimento possa fazer

Ao afirmar a existência de uma função dita “fraterna” na constituição do sujeito, Maria Rita Kehl diz que “o outro semelhante” – a começar pelo irmão – contribui decisivamente para nos estruturar. Com o termo função, ela diz que chama a atenção para o “caráter necessário, não contingente, da participação do semelhante no processo de tornar-se sujeito, para os humanos”. Com o uso da palavra fraterna, afirma que “faz questão de trazer de volta, como objeto de consideração e debate entre os psicanalistas, a ideia banida, quase maldita, de fratria”. 

Ao conversar com o Freud de Psicologia das Massas, Maria Rita lembra a importância da constatação, para a criança, da semelhança na diferença introduzida pelo irmão em seu campo narcísico: esse encontro força-o a uma reelaboração da relação especular com o eu ideal e constitui, para o eu, um objeto ao mesmo tempo de ciúme, de interesse, de ódio e de identificação.

Por que trabalhar com grupos?

O encontro da semelhança na diferença. É dessa forma que concebemos o encontro dessas crianças, sujeitos em constituição, trazidos pelos seus responsáveis – pais, avós, irmãos, abrigos –, cada qual com seus impasses. Colocadas juntas não pelos seus sintomas, mas pelo fato de serem crianças, e com a consigna de que podem brincar livremente, põem-se a atuar no espaço de ação imaginária proposto pelos psicanalistas, e portam, em seu brincar, as marcas daquilo que lhes anima a alma e/ou que lhes faz sofrer. E convocam, brincando, os demais a serem seus parceiros:  chamam seus soldados a batalhar pelas almofadas da sala; cozinham para todos do grupo; são um bichinho de estimação que se põe, desavisadamente, no meio do campo de guerra; dançam para um grupo de jurados avaliar-lhe os movimentos; escondem-se na toca como se não fosse com eles; são o zumbi que assusta e mata a todos que veem pela frente; atribuem zero em todas as provas que o aluno realiza, não importa o que se escreva nelas. 

Há as brincadeiras que vingam, há aquelas que morrem na praia. Parece-nos que as brincadeiras nas quais todos (ou a maioria) se engajam servem como veículo para que cada qual, a sua maneira, fale de suas questões. É uma espécie de “uso coletivo” da mesma cena – o grupo constrói um jogo simbólico que dá a ver um pouco do que é pertinente a cada uma das crianças. Nesse contexto, percebemos que, muitas vezes, um participante mais defendido, ou com maior inibição, pode “aproveitar-se” de seu par e adentrar o jogo simbólico pelas mãos do outro semelhante. Ou então, mirar-se na experiência alheia e “pegar carona” em outras vidas que ali se encenam, mesmo que ainda não consiga trazer a sua para o jogo.

De fato, há uma espécie de experiência comum da qual compartilham, que pressupõe uma construção cotidiana do estar em grupo (levamos em conta que o estar em grupo precisa ser construído, é diferente do simples ajuntamento de indivíduos).

Brincar é coisa séria, lembra Freud em Escritores Criativos e Devaneio. E trabalhando nesse grande reino brincante, o papel da dupla de analistas é, essencialmente, garantir e possibilitar que essa atividade aconteça de fato, permanecendo atenta, no entanto, às interrupções da brincadeira. Aí, muitas vezes, faz-se necessário intervir para restituir a potência simbólica do brincar, constrita por inibições que colocam obstáculos no deslizamento da cadeia simbólica.

O grupo proporciona muitas aberturas pela intensidade dos encontros e pela multiplicidade de posicionamentos. Se nós, como analistas, além dos apontamentos e interpretações, cuidamos para que as crianças não se machuquem e não cometam atos abusivos umas em relação às outras, as intervenções entre as crianças, ou seja, de criança para criança são de ordem direta. Elas interpelam umas às outras com toda a intensidade de seu desejo de contato, disputa, parceria ou reclusão. Colocam seu corpo em cena, atuando diretamente junto às demais. Assim, o que poderia ser um ato abusivo e assustador se partisse do analista, entre as crianças, os atos são cabíveis porque promovem experimentações e a possibilidade de se construir reciprocidade, ou colocar o outro em xeque, não tendo como se retirar daquilo que seus pares lhe colocam. Enfim, as crianças dentro do grupo se confrontam com situações raras de acontecerem no âmbito mais protegido das sessões individuais.

É importante dizer que, durante a feitura desse texto, fomos surpreendidos pelas contundentes restrições que o recentíssimo cenário da pandemia impôs ao “estar junto”. Não podemos desfrutar mais da potência presencial do grupo de crianças, no qual o corpo é instrumento poderoso. Como manter nossos laços vivos e nossas apostas na possível troca, ainda que esgarçada, que os instrumentos remotos permitem, é o grande desafio que temos pela frente. Nessa empreitada, a potência inventiva do grupo nos lança a inventar maneiras de propor o encontro e a não nos deixarmos levar pela paralisia psíquica que ronda esse momento tão difícil para todos.

Alessandra Barbieri

psicóloga e psicanalista

professora do curso Psicanalise com Crianças do Departamento Psicanálise com Crianças e membro do mesmo departamento; psicoterapeuta voluntária do Projeto de Atenção à Infância da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae

Contato: e-mail : alessaaclb@gmail.com  Telefone: (11) 96405-0595

Ricardo Portolano

psicólogo e psicanalista

mestre em psicologia social pela PUC-SP; psicoterapeuta voluntário do Projeto de Atenção à Infância da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae

Contato: e-mail: rportolano@gmail.com   Telefone: (11) 999343185

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